Reivindicação histórica do movimento negro, a lei de cotas nos concursos públicos expira em junho de 2024 sob o diagnóstico de que seus efeitos ficaram aquém do esperado. O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quer fechar, ainda no primeiro semestre deste ano, uma proposta para renovar e aprimorar a legislação.
A intenção é aperfeiçoar os mecanismos para conseguir, efetivamente, promover uma transformação do serviço público federal, que ainda hoje é formado por uma maioria branca —sobretudo em cargos de maior remuneração.
"Combinamos de fazer no início do ano uma avaliação de como está hoje esse quadro, tanto no acesso, mas também nos altos cargos de gestão, para avaliar eventualmente metas e pensar em formas de garantir uma maior diversidade no topo", afirmou a ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, Esther Dweck, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.
A Lei 12.990 foi aprovada em 2014, a partir de um projeto apresentado pelo governo Dilma Rousseff (PT). Ela prevê uma reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos federais para pessoas negras. O critério inclui aqueles que se autodeclaram pretos ou pardos, conforme a classificação usada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A lei também estipulou uma vigência de dez anos para a política, prazo que se completará em junho de 2024 —daí a discussão sobre a renovação.
Ainda durante a campanha, a equipe de Lula já falava na necessidade de aprimorar a legislação, para prever também cotas específicas para indígenas.
Agora, as conversas vão na direção de cuidar não só da entrada desses grupos no funcionalismo, mas também das condições para sua ascensão na carreira. "É uma discussão para avaliar se não teria [que ter] metas para cargos [de alto nível]", disse Dweck.
Segundo ela, a proposta foi sugerida inicialmente por representantes do Ministério da Igualdade Racial. "Na transição ainda, combinamos de fazer no início do ano uma avaliação de como está hoje esse quadro, tanto no acesso, mas também nos altos cargos de gestão, para avaliar eventualmente metas e pensar em formas de garantir uma maior diversidade no topo", afirmou.
Segundo a ministra, o fato de Lula ter nomeado negros e mulheres para comandar ministérios acabou servindo de incentivo para que a diversidade fosse replicada pelas áreas. Das 37 pastas, 10 são comandadas por autodeclarados negros, e duas por autodeclarados indígenas. São 26 homens e 11 mulheres.
Ainda assim, o panorama geral está longe de uma mudança estrutural. A ministra não descarta prever cotas ou ao menos metas para o número de pessoas negras em cargos em comissão. "Se você olhar mulheres negras nos cargos de alta gestão, era um percentual muito baixo, em torno de 2%. Então a gente tem que tentar entender isso", disse.
O diagnóstico sobre a eficácia da lei de cotas tem sido em parte prejudicado porque houve uma forte redução na quantidade de concursos públicos nos últimos anos, diante do agravamento da situação fiscal do país.
Ainda assim, um estudo da Enap (Escola Nacional de Administração Pública), publicado em 2021 em parceria com a UnB (Universidade de Brasília) e o Executivo federal, concluiu que os resultados observados desde a aprovação da lei demonstraram sua insuficiência na promoção do ingresso de pessoas negras no funcionalismo federal.
Em todos os concursos, exceto aqueles voltados à carreira de professor de ensino superior, apenas 15,4% dos candidatos aprovados e que estão registrados no sistema de pessoal da União (ou seja, de fato ingressaram na carreira) se declararam ou foram identificados como cotistas.
Esse primeiro dado já indica que o percentual da lei de cotas seria descumprido, mas há um segundo ponto. Há candidatos negros que obtêm boas notas e acabam sendo nomeados em vagas destinadas à ampla concorrência. "Espera-se que o número de nomeados em vagas reservadas para negros seja, então, menor do que os 15,4%", diz o estudo.
O trabalho analisou informações dos concursos públicos com edital de abertura publicado entre junho de 2014, quando a lei entrou em vigor, até dezembro de 2019.
Além de cruzar as listas de aprovados com os registros de pessoal do governo federal, os pesquisadores aplicaram critérios adicionais, como data de ingresso no cargo e se é ou não servidor estatutário. Isso foi feito para evitar contabilizar "falsos positivos", isto é, pessoas que prestaram o concurso como cotista, mas ingressaram no serviço público depois, por meio de outras modalidades, como cargos comissionados ou contratos temporários.
Na carreira de professor do magistério superior, os pesquisadores conseguiram quantificar o percentual de nomeados exclusivamente para as vagas reservadas a negros, por meio da análise de portarias publicadas no DOU (Diário Oficial da União). O índice ficou em mero 0,53%.
Embora os efeitos da lei tenham ficado abaixo do esperado, ainda assim houve uma ampliação da presença de negros no serviço público. "A política de cotas está correlacionada com um aumento de 3% no número de negros no serviço público", diz o estudo da Enap.
Dados do Atlas do Estado Brasileiro, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), mostram que, até 2013, pretos e pardos representavam no máximo 32,3% dos novos funcionários públicos a cada ano. O percentual subiu para 37,5% em 2015, logo após a sanção da lei de cotas, e alcançou 43,5% em 2020, dado mais recente disponível.
O problema, segundo os pesquisadores da Enap, é que a garantia de um piso em proporção de vagas para esse grupo não foi suficiente para levar a um aumento expressivo da parcela de servidores negros no Poder Executivo Federal.
Quando se analisa o total dos funcionários federais ativos, os números mostram que a ampliação da diversidade racial no serviço público ainda é tímida.
Em 2013, um ano antes da publicação da norma, 32,6% dos servidores do Executivo federal eram pretos ou pardos. O percentual subiu a 35,1% em 2020, segundo os dados do Ipea.
O Painel Estatístico de Pessoal, mantido pelo próprio Poder Executivo, mostra que essa participação estava em 36,2% em janeiro de 2023.
O avanço também foi pequeno entre cargos de alta gestão. Embora representem mais de um terço da força de pessoal, os negros ficaram com menos de um quinto dos cargos de ministros ou secretários —classificados como direção e assessoramento superiores (os DAS) nos níveis 5 ou 6 (os mais altos).
Em 2013, 158 negros ocupavam esses postos, o equivalente a 12% das posições. Em 2020, o grupo detinha 230 vagas, ou 17% do total, segundo os dados do Ipea. A pesquisa não alcança o novo governo Lula.
O estudo da Enap cita outros levantamentos para apontar que há desigualdade também entre as carreiras. Entre os diplomatas, por exemplo, levantamento de 2014 apontou que os negros representam 6% do total. Entre os auditores da Receita Federal, o percentual é de 12%.
Esses estudos concluem que o homem branco é o perfil dominante no serviço público e ocupa os cargos com maior remuneração. Em condições opostas estão as mulheres negras –que estão em posições de menor remuneração e se concentram na administração municipal.
A ministra Esther Dweck disse também que o governo quer incentivar os servidores a responderem pesquisas e preencherem a autodeclaração, hoje facultativa, para traçar um panorama mais fidedigno do quadro da diversidade na administração pública.
Segundo ela, o TCU (Tribunal de Contas da União) também tem dialogado em busca de aprimorar os dados disponíveis sobre o perfil dos servidores públicos.
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ENTENDA AS COTAS NO SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL
O que é a lei de cotas no funcionalismo?
Criada em 2014, a lei reserva aos negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União.
Quem pode usar o mecanismo?
Podem concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público.
E se houver declaração falsa?
O candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão (após procedimento administrativo com contraditório e ampla defesa), sem prejuízo de outras sanções cabíveis.
Qual foi o prazo estipulado pela lei?
A lei tem vigência pelo prazo de dez anos (ou seja, até junho de 2024).