Foto: Marcelo Camargo / EBC
Por iniciativas do Congresso e do governo de Luiz Inácio Lula
da Silva (PT), 2024 ficou marcado pelo aumento de uma série de despesas no
setor de energia —e a maior parte vai impactar a conta de luz não apenas em
2025, mas por décadas. São mais de R$ 300 bilhões adicionais na tarifa, segundo
projeções da PSR, consultoria global da área de energia, e da Frente Nacional
de Consumidores de Energia.
"A gente passou o ano tentando deter os aumentos —se, de
um lado, conseguíamos tirar de um projeto de lei, de outro, aparecia numa
medida provisória", diz Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente.
O Ministério de Minas e Energia afirma que atua para garantir
segurança energética para o país (leia mais abaixo).
Parte dos custos já começa a ser sentida na inflação de 2025.
Segundo o economista Andre Braz, do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia
da Fundação Getulio Vargas), consultorias do setor já projetam uma alta média
nas tarifas 5% acima do IPCA, o índice oficial de inflação.
"O IPCA deve fechar em quase 5%, então o reajuste médio
da tarifa vai ficar na casa de 10% no ano. Se for tão ruim assim, a gente já
larga o ano com um impacto de 0,4 ponto percentual na inflação, que vai sendo
captado ao longo de 2025 pelo reajuste contratual de cada empresa",
calcula o economista.
Para o consumidor é o pior dos cenários. Braz lembra que
energia elétrica compromete aproximadamente 4% da renda familiar.
O item pesado é o projeto de lei das eólicas em alto mar, ou
PL das offshores, como ficou conhecido. Apesar da forte pressão contrária das
entidades do setor, foi aprovado no Senado cheio de jabutis (emendas alheias à
proposta original), como subsídios ao carvão.
Se o presidente Lula não vetar os jabutis e garantir que não
sejam ressuscitados na Câmara, o consumidor vai pagar a conta. São R$ 21
bilhões por ano, até 2050, ou um total de R$ 241 bilhões, trazendo a valor
presente. Uma alta de 7% na conta de luz.
Outro item indefinido é o efeito do câmbio sobre a tarifa de
Itaipu, que é dolarizada. A usina binacional é um caso à parte na galeria de
aumentos. Como a dívida para a sua construção foi quitada em 2023, deveria
estar contribuindo com a redução no preço da energia, mas ocorre o contrário.
Em 2023, a tarifa na boca da usina, que é chamada de Cuse
(Custo Unitário do Serviço de Eletricidade), estava em US$ 16,71 por kW
(quilowatt). Sem a dívida, deveria ter caído para US$ 11. Ocorre que Brasil e
Paraguai usam a diferença para fazer um caixa extra que banca obras e projetos
socioambientais e resistem a baixar o valor. Depois de meses de negociação, os
parceiros anunciaram, em maio, um acordo para uma Cuse de US$ 19,28 por três
anos, até 2026.
Os consumidores de Sul, Sudeste e Centro Oeste são obrigados
a pagar por 80% da energia de Itaipu. O MME (Ministério de Minas e Energia),
sob o argumento de que o consumidor brasileiro não seria prejudicado, anunciou
o congelamento da tarifa e um cashback de US$ 300 milhões para cobrir a
diferença. Especialistas afirmam que isso não muda o prejuízo para os
consumidores.
"O legado do acordo é fazer o consumidor brasileiro
pagar US$ 16,71, até 2026, pela energia de Itaipu, quando poderia estar pagando
algo próximo a US$ 11. Essa diferença leva a uma despesa maior para os
consumidores brasileiros, próxima a US$ 640 milhões ao ano, de 2024 a
2026", afirma a engenheira Ângela Gomes, diretora Técnica da PSR. No
total, serão R$ 11 bilhões, trazendo a valor presente, lembra ela.
Há outro problema. Em setembro, um estudo da ANE (Academia
Nacional de Engenharia) identificou que o cashback era insuficiente, mas o
alerta foi ignorado. Agora, do lado brasileiro, há um descasamento entre
receita e despesa, com um buraco da ordem de US$ 120 milhões, segundo cálculos
da TR Soluções, empresa de tecnologia especializada em tarifas de energia.
São cerca de R$ 740 milhões, pela cotação atual da moeda
americana. A TR tomou como base documentos da Aneel (Agência Nacional de
Energia Elétrica) e da ENBPar (Empresa Brasileira de Participações em Energia
Nuclear e Binacional, que assumiu como holding de Itaipu após a privatização da
Eletrobras).
"Pode ter havido um ruído de comunicação, porque,
aparentemente, a conta para a projeção do ressarcimento não inclui todos os
itens", disse à reportagem o diretor de Regulação da TR Soluções, Helder
Sousa.
Está claro que a estimativa do cashback focou na Cuse, o que
garantiu o ganho integral de Itaipu. No entanto, não previu cobertura para a
Conta de Comercialização no Brasil, que é gerenciada pela ENBPar. Deixou de
fora, por exemplo, o gasto com cessão de energia, item dessa conta que também é
pago pelos brasileiros. Há indicativos de que as projeções para geração também
não se confirmaram. A questão é que, agora, alguém precisa pagar o déficit .
No início de dezembro, ao tratar do problema, a Aneel deu 45
dias para receber sugestões do MME e da ENBPar sobre o que fazer para não
cobrar a diferença na conta de luz. Ao anunciar o rombo, o diretor da Aneel,
Fernando Mosna, comentou que o MME havia dado uma "derrapada".
Foi o segundo incidente do tipo envolvendo a pasta. No final
de outubro, o mesmo Mosna qualificou de "erro grosseiro" o resultado
de uma operação com bancos que antecipou o pagamento de dois empréstimos que
pesavam na conta de luz. O MME havia estimado redução média de 3,5% e 5% na
tarifa, mas a queda efetiva foi de 0,02%.
A tendência de alta no preço da energia repercute claramente
em outra despesa, a CDE (Conta de Desenvolvimento Energético), que acumula
subsídios e encargos que são pagos pela conta de luz. Já se sabe que em 2025
vai bater recorde: R$ 40,6 bilhões.
Uma semana antes do Natal, o diretor geral da consultoria
Volt Robotics, Donato da Silva Filho, dedicou uma apresentação a jornalistas
para detalhar os aumentos.
"A CDE levou cinco anos para passar de R$ 20 bilhões
para R$ 30 bilhões, mas, para ir de R$ 30 bilhões para R$ 40 bilhões, foram
quatro anos. Mantido o ritmo, em 2028, no máximo, a gente chega a R$ 50
bilhões", diz Donato.
O aumento não apenas acelera como se concentra. Quatro itens
respondem por cerca de 90% da CDE: descontos tarifários (40%), CCC (Conta de
Consumo de Combustível, outros 25%), tarifa social (15%) e universalização, que
inclui o Luz para Todos e o Luz para a Amazônia (10%).
Nos descontos tarifários —o maior item— estão justamente os
benefícios para quem vende e para quem compra energia renovável, que foram
turbinados pelo Congresso e pelo governo. Esse grupo não paga integralmente
pelo uso do fio, e a despesa é transferida para os demais consumidores.
Traduzindo: cada nova leva de painéis solares, do jeito que está o modelo,
significa aumento na conta de luz de quem não tem painel solar, por exemplo.
No caso do subsídio para a baixa renda na tarifa social, que
é meritório, Donato defende, já faz um tempo, um pente-fino. Uma lei de 2021
determinou que a distribuidora deve dar o benefício automaticamente para quem
estiver no cadastro social, ao invés de o consumidor ter que ir atrás dele.
Isso fez a despesa disparar.
Outra preocupação é a universalização do atendimento em áreas
rurais e remotas. Na avaliação da Volt é preciso melhorar a governança dos
recursos. Em 2024, por exemplo, foram previstos R$ 2,5 bilhões em
investimentos, mas apenas R$ 800 milhões foram executados. Ainda assim, o
orçamento subiu para R$ 4 bilhões em 2025.
A única despesa da CDE que tem previsão de queda, da ordem de
R$ 392 milhões, é a CCC. Mas o valor pode subir.
A MP (Medida Provisória) 1.232, do governo federal, trouxe
flexibilizações para evitar a falência da Amazonas Energia e viabilizar a
transferência de controle –da Oliveira Energia para a Âmbar, do grupo da
J&F, dos irmãos Joesley e Wesley Batista. A MP caducou, mas uma discussão
judicial manteve as flexibilizações. Se as medidas forem adotadas, os
consumidores vão assumir custos estimados em R$ 14 bilhões por 15 anos.
Também coube ao MME validar o uso da térmica de Cuiabá, da
mesma Âmbar, num processo polêmico que se arrastou por mais de dois anos. A
medida adicionou R$ 9 bilhões à conta de luz ao longo de 15 anos. A Âmbar havia
assumido projetos de um leilão que exigia a construção de novas usinas, mas
sugeriu a troca pela Cuiabá, há duas décadas de operação. Por forte oposição
das áreas técnicas, a proposta não foi ratificada diretamente na Aneel ou no
TCU (Tribunal de Contas da União).
Outra medida de iniciativa do governo que contribuiu para o
ciclo de aumentos foi a MP 1.212. O texto prorrogou em três anos o prazo para
investidores em energia renovável terem acesso a subsídios, o que, na prática,
pelas estimativas trazidas a valor presente, elevará em R$ 50 bilhões os gastos
dos brasileiros com subsídios ao longo do prazo das concessões, até 2050.
"A gente olha para frente, vê aumento dos custos da
energia e da insegurança regulatória, mas a comunicação do governo fala em
redução da tarifa de energia em 2025, porque vai ter mais chuva e menos chance
de bandeira vermelha —é uma versão bem diferente da realidade que
presenciamos", afirma Lucien Belmonte, porta-voz do movimento União Pela
Energia, que reúne 70 associações da indústria brasileira.
Procurada para comentar o balanço setorial em 2024, a
assessoria do MME afirmou em nota que a pasta atua para garantir modicidade
tarifária e segurança energética para o país.
Destacou que MP 1.212 solucionou o descasamento dos
investimentos em geração de energia limpa e renovável com os leilões de linhas
de transmissão de energia, mas não explicou como esse descasamento ocorreu, uma
vez que planejamento de geração e de transmissão são atribuições do governo.
Disse ainda que a MP não criou novos subsídios, mas não
comentou o fato de a extensão do prazo aumentar o gasto do consumidor com esses
benefícios
A assessoria destacou os benefícios socioeconômicos que o
ministério identificou com a MP: "Geração de 300 mil novos empregos,
destravamento de 600 projetos e quase 26 gigawatts de geração e energia limpa e
renovável, garantia de R$ 100 bilhões em investimentos, dos quais R$ 5 bilhões
já foram depositados em forma de caução", detalhou o texto.
Em relação à MP 1.232, a assessoria afirma que foi medida de
extrema necessidade para garantir a segurança no suprimento de energia aos
consumidores do estado do Amazonas e o equilíbrio econômico e financeiro da
concessão.
Sobre o déficit ligado a Itaipu, não coberto pelo cashback,
afirmou que organizações ligadas à usina, ENBPar e Aneel realizarão as
tratativas necessárias para manter, ao longo de 2025, as premissas do acordo.
Destacou também que a negociação sobre Anexo C ainda está em curso, e a meta do
Brasil é garantir tarifas que estejam apenas relacionadas ao próprio custo da
usina, mas não explicou a razão do atraso.
A assessoria não esclareceu se a pasta reconhece as
distorções na CDE. Afirmou que os programas como o Baixa Renda e Luz para Todos
são fundamentais para o combate à pobreza energética e que o MME tem trabalhado
para aprimorar a governança e a transparência dessas políticas.
A assessoria reforçou que a atual gestão do MME atua para
evitar soluções setoriais isoladas e tentou deter os jabutis do PL das eólicas
offshore, bem como outras iniciativas do gênero, como as inseridas no PL do
Combustível do Futuro e do Programa de Aceleração da Transição Energética.
Disse ainda que há um esforço para concluir a reforma setorial.
"O MME tem atuado para prover uma solução estrutural
para o setor de energia, mantendo a expansão de geração limpa e renovável e a
segurança energética. A proposta está em fase final e já em tratativas
avançadas com a Casa Civil."
Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa da ENBPar
detalhou que apenas o saldo da Conta de Comercialização em dezembro, atualizado
na data-base de outubro, é de R$ 306,5 milhões negativos, e que foi o primeiro
déficit desde que a estatal assumiu a administração, em junho de 2022.
"O resultado deve-se basicamente à escassez hídrica, que
reduziu o excedente de energia e, consequentemente, a receita com a geração de
Itaipu", explicou o texto.
Também em nota, a assessoria de imprensa da Âmbar disse que
ambas as medidas citadas pela reportagem trazem ganhos para os consumidores de
energia, não perdas.
O acordo da Âmbar relativo ao PCS garante uma economia de 67%
em relação ao contrato original e a ampliação da potência disponível para o
sistema elétrico. "Trata-se do maior desconto aos consumidores entre todas
as soluções consensuais do PCS, contando com aprovação do plenário do
TCU", destaca o texto.
Já o plano de transferência da Amazonas Energia mantém as
flexibilizações regulatórias nos mesmos patamares médios que a distribuidora
recebeu nos últimos cinco anos, ao mesmo tempo em que obriga a Âmbar a realizar
um aporte de capital de pelo menos R$ 6,5 bilhões em 2025, segundo a
assessoria. "A transferência evita um prejuízo total para a União que
poderia superar os R$ 20 bilhões, entre dívidas, custos e ressarcimentos",
afirma o texto.
*
AUMENTOS CONTRATADOS EM 2024
R$ 241 bi
Jabutis no projeto de lei das eólicas offshore; o valor
presente, estimado a partir de 2050, representa aumento médio de R$ 21 bi ao
ano por esses 25 anos
R$ 50 bi
MP 12.012, que prorrogou em três anos o acesso dos
investidores de renováveis a subsídios; a cifra é o montante gasto ao longo de
25 anos, trazida a valor presente de 2050, ano em que se encerram as concessões
R$ 11 bi
Quanto custa para o consumidor, ao longo de três anos, manter
a Cuse de Itaipu em US$ 16,7 por kW quando poderia pagar US$ 11; em dólar, a
diferença representa uma despesa de US$ 1,92 bi no período
R$ 14 bi
Custo das flexibilizações previstas na MP 1.232 para a
recuperação da Amazonas Energia; é valor nominal ao longo dos 15 anos, sem
incluir o custo já repassado para a energia de reserva
R$ 9 bi
Previsão do acordo entre MME e Âmbar Energia, dentro do PCS
(Procedimento Competitivo Simplificado), com apoio do TCU (Tribunal de Contas
da União); valor nominal ao longo do período, até 2032
R$ 740 mi
Cifra que não foi coberta pelo cashback que manteve a Cuse de
Itaipu congelada em 2024 e precisa ser paga em 2025
Fonte: Frente Nacional de Consumidores de Energia e PSR
MEDIDAS PROTELADAS EM 2024, SEGUNDO ESPECIALISTAS DO SETOR
Reforma geral do setor
Vital para deter aumentos de subsídios, que são puxadinhos
para contornar falhas na estrutura do sistema
Leilão da chamada reserva de capacidade
Busca dar estabilidade à oferta de energia, cada vez mais
instável pelo avanço das renováveis. Essa distorção já provoca picos diários de
preços, e obriga o ONS (Operador Nacional do Sistema) a cortar energia
renovável, o que afeta o caixa dessas geradoras
Escolha do diretor da Aneel, que saiu em maio
A cadeira vaga cria dificuldades para a tomada de decisões
mais sensíveis e, ainda assim, a Aneel segue como única agência que inicia 2025
com essa indefinição
Usina de Itaipu
Não houve anúncio sobre desfecho das negociações do Anexo C
(parte do Tratado de Itaipu que trata dos itens financeiros), apesar de o prazo
final acertado pelos dois países ser dezembro