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A indústria do plástico escondeu
informações sobre a real viabilidade da reciclagem como solução para os milhões
de toneladas de resíduos plásticos descartados todos os anos, o que garantiu a
expansão de seus mercados ao mesmo tempo em que gerou uma crise ambiental.
É isso o que afirma um estudo da
ONG norte-americana CCI (Center for Climate Integrity), lançado neste mês, que
mobilizou o setor petroquímico (o chamado "Big Oil"), a indústria de
transformação plástica e associações de reciclagem nos EUA, assim como no
Brasil. Todos são críticos às principais conclusões do relatório, intitulado
"A Fraude da Reciclagem de Plástico" e celebrado por ambientalistas.
O estudo traz documentos
inéditos da indústria do plástico nos EUA que indicam limites da reciclagem
deste tipo de material já apontados por investigações anteriores às quais o CCI
faz referência. São relatórios internos, apresentações de conferências do setor
e notas de um funcionário do Conselho Americano do Plástico, uma das principais
entidades comerciais dos anos 1980 e 1990.
Os documentos do setor citam
dificuldades de recuperação do material descartado e a baixa demanda por resina
plástica reciclável, por causa da degradação do material frente às exigências
de pureza e de qualidade estabelecidas para muitas aplicações.
Eles indicam também que a
incineração de resíduos plásticos para a produção de energia era considerada um
caminho mais lógico, ainda que ecologicamente controverso, e que, diante do
aumento da consciência ambiental e de iniciativas regulatórias, a reciclagem
precisava de investimento do setor para evitar o surgimento de leis mais
restritivas ao material.
Uma dessas iniciativas foi a
criação, pela Sociedade da Indústria Plástica dos EUA, em 1988, de códigos para
diferenciar algumas das várias composições de resina plástica. São números de 1
a 7 envoltos no símbolo da reciclagem —um triângulo formado por três setas no
sentido horário.
Pareceres contrários argumentam
que a iconografia sugeria que aquele material era reciclado ou seria reciclado,
quando não havia esse compromisso nem a viabilidade econômica para a
implementação da reciclagem de toda a variedade de plásticos indicados junto ao
símbolo das setas.
"Essas fontes, juntas, são
evidências convincentes de que essa indústria tinha consciência de que a
reciclagem não era uma solução viável para o problema da poluição
plástica", diz à Folha de S.Paulo Davis Allen, investigador do CCI e
principal autor do estudo.
"Sabia-se que a reciclagem
do plástico não era tecnicamente nem economicamente viável diante a escala do
problema. E, ao promover essa falsa promessa, a indústria enganou consumidores
e legisladores para proteger e expandir seus mercados e, ao mesmo tempo, conter
as iniciativas regulatórias, em especial aquelas contra a disseminação de
plásticos de uso único."
Após mais de 30 anos de promoção
da reciclagem, estima-se que apenas 9% do plástico descartado globalmente
sejam, de fato, reciclados. No Brasil, estudo da ONG WWF, baseado em dados do
Banco Mundial, afirma que, em 2019, apenas 1,3% foi reciclado.
Já o Índice de Reciclagem
Mecânica Pós-Consumo, iniciativa da Abiplast (Associação Brasileira do
Plástico), indica que a reciclagem foi de 25,6% em 2022.
"Durante anos, diversas
iniciativas e políticas públicas foram meticulosamente elaboradas em prol da
reciclagem de plástico, sendo essencial reconhecer esse esforço", afirma,
em nota, o presidente da Abiplast, Paulo Teixeira, que acusa o relatório do CCI
de "inconsistências", sem especificá-las.
"Empresas de renome, como
Coca-Cola e Unilever, estabeleceram metas específicas em relação ao tema,
evidenciando que qualquer empreendimento ambiental não deve ser subestimado ou
desqualificado", avalia ele.
Também procurada, a Abiquim
(Associação Brasileira da Indústria Química), que reúne as petroquímicas, diz,
em nota, que a gestão do plástico é um tema de interesse da indústria química e
que entende que a poluição plástica está ligada à má gestão de resíduos, como o
descarte incorreto.
Segundo o presidente-executivo
da Abiquim, André Passos Cordeiro, as empresas da entidade vêm investindo em
produtos feitos a partir de fontes renováveis, resinas termoplásticas
produzidas a partir de plástico reciclado, pesquisas de processos de reciclagem
química, geração de energia a partir de fontes renováveis e metodologias para
auxiliar clientes a desenvolverem embalagens mais sustentáveis.
Leve e barato, versátil e
durável, o plástico é o material dominante na economia contemporânea. Fabricado
a partir de combustíveis fósseis, o plástico teve um salto de produção de 1,5
milhão de toneladas em 1950 para 460 milhões de toneladas em 2019. Projeções
estimam que esse montante deve pelo menos dobrar até 2060.
Com isso, escalou também a
produção de lixo, o que tornou o descarte do plástico "uma grande ameaça
aos ecossistemas", como classificou a ONU. A organização prevê concluir
neste ano o Tratado Global Contra a Poluição Plástica.
"O que estamos percebendo
agora é que a sequência relativamente simples de coletar, separar, classificar,
triturar, limpar e refabricar pode ter utilidade para reciclar uma parte
significativa do fluxo de resíduos plásticos, mas não parece ser algo amplamente
aplicável para o manejo do lixo plástico", escreveu em 1992 um gerente de
tecnologia da DuPont, uma das maiores empresas químicas do mundo, em documento
reproduzido pelo CCI.
De acordo com o relatório da
ONG, as diversas composições plásticas que existem no mercado são um primeiro
entrave à reciclagem, pois cada tipo tem um processamento específico. Além
disso, cada vez mais embalagens plásticas são produzidas com camadas de outros
materiais, o que dificulta ou mesmo inviabiliza sua separação.
Com essa complexidade técnica,
ainda que as diferentes composições de plástico sejam potencialmente
recicláveis, na prática, muitas delas não o são, afirma o relatório.
Pesa, ainda, a questão
econômica. Segundo o estudo, os custos dos processamentos seguem altos e o
produto resultante tem menor qualidade e aplicação restrita. Desse modo, a
resina plástica virgem, obtida diretamente dos combustíveis fósseis, costuma
ser mais barata do que a resina plástica reciclada.
"Toda a cadeia produtiva do
plástico tem culpa, em algum grau, por essa fraude. Mas são as empresas
petroquímicas, de petróleo e de gás, que mais usaram a falsa promessa de
reciclagem para aumentar exponencialmente a produção de resina virgem",
afirma Allen, para quem a promessa da reciclagem criou um crise global de
resíduos plásticos e impôs custos significativos a governos locais e
comunidades responsáveis pelo manejo de resíduos.
No Brasil, o Planares (Plano
Nacional de Resíduos Sólidos), de 2022, estabelece metas de reciclagem para
embalagens plásticas, que serão elevadas para 30% em 2024, com vistas a atingir
50% em 2040.
Para a gestora ambiental
Isabella Vallin, do Núcleo de Pesquisa em Organizações, Sociedade e
Sustentabilidade da USP (Universidade de São Paulo), a medida ainda é
insuficiente. "Ainda que a indústria recicle 30% do resíduo plástico, isso
é pouco significativo frente ao volume gerado pela indústria, com grande
impacto ambiental."
Segundo a engenheira Tereza
Cristina Melo de Brito Carvalho, coordenadora do Laboratório de
Sustentabilidade da Poli-USP, o plástico não é um vilão, mas deveria ter seu
uso descartável restrito a áreas essenciais, como a saúde.
"É uma questão profunda
porque o plástico permeia embalagens, vestimenta, mobiliário e quase toda a
sociedade moderna. E, por isso, temos tantos aglomerados econômicos
interessados em proteger essa indústria e em não reconhecer certas informações
[como as do estudo do CCI]."