Foto: Rovena Rosa | Agência Brasil
A internet no Brasil deixou de ser “terra de
ninguém” após a sanção da lei nº 14.811/24 que estabelece medidas para reforçar
a proteção de crianças e adolescentes contra a violência, inclusive em
ambientes virtuais. A nova legislação, publicada no Diário Oficial da União
dessa segunda-feira (15), institui a Política Nacional de Prevenção e Combate
ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente e promove alterações
significativas no Código Penal, na Lei dos Crimes Hediondos e no Estatuto da
Criança e do Adolescente, criminalizando, por exemplo, as práticas de bullying
e cyberbullying.
O texto aponta que serão tratados como crime a
prática de “intimidar sistematicamente, individualmente ou em grupo, mediante
violência física ou psicológica, uma ou mais pessoas, de modo intencional e
repetitivo, sem motivação evidente, por meio de atos de intimidação, de
humilhação ou de discriminação ou de ações verbais, morais, sexuais, sociais,
psicológicas, físicas, materiais ou virtuais".
Em entrevista ao Bahia Notícias, a advogada
especialista em Direito Digital e Privacidade de Proteção de Dados, Cristina
Rios, explicou que, por mais que seja uma legislação recente e que aguarda a
interpretação do Judiciário, é possível que ela seja utilizada para punir
condutas inadequadas em jogos on-line, já que a lei entende como “ambientes
virtuais” uma rede de computadores, rede social, aplicativos, jogos on-line ou
qualquer outro meio ou ambiente digital, ou transmitida em tempo real.
“Se existe, dentro de um jogo on-line, essa prática
de intimidação sistemática, seja individualmente ou em grupo, mediante
violência psicológica ou assédio, é sim possível ter a aplicação dessa
tipificação. Porque o cyberbullying nada mais ou menos do que é a intimidação
sistemática feita em redes sociais, em aplicativos, jogos on-line, ou qualquer
meio ou ambiente digital. Essa é a principal diferença entre os dois crimes
[bullying e cyberbullying] e é possível a gente ter a extensão dessa
aplicação”, afirmou a especialista.
A lei nº 13.185, de 2015, que instituiu o Programa
de Combate à Intimidação Sistemática, já prevê a figura do bullying, mas não
estabelecia punição específica para esse tipo de conduta, apenas obrigava
escolas, clubes e agremiações recreativas a assegurar medidas de
conscientização, prevenção, diagnose e combate à violência e à intimidação
sistemática. O advogado criminalista Domingo Arjones pontuou, ao Bahia
Notícias, que essa lei representa um avanço do legislativo e do direito
processual penal brasileiro no sentido de coibir práticas que estão em processo
de evolução do ponto de vista criminal.
“Hoje em dia, o mundo é um mundo virtual, um mundo
eletrônico. Então, a legislação e o Estado precisam também se enquadrar no
sentido de evoluir e trazer elementos novos para que possa seguir ou acompanhar
o desenvolvimento da criminalidade. Então essa lei hoje, contempla interesses
de toda a sociedade brasileira”, explicou o advogado.
DENÚNCIA
De acordo com Cristina Rios, em ambientes virtuais
é crucial que os jogadores estejam cientes de suas opções para garantir a
segurança emocional. Ela pontua que denúncias de comportamentos abusivos podem
ser feitas dentro do próprio game por meio de canais onde os jogadores devem
fornecer detalhes sobre os incidentes e anexar as evidências.
“Muitos jogos já possuem sistemas de denúncia
incorporados. Se um jogador se depara com comportamentos ofensivos, ameaças ou
difamação, a primeira ação com certeza é utilizar esses sistemas, geralmente
encontrados nos menus de configurações ou perfis. Mas é também importante
capturar evidências, e isso pode incluir tirar prints ou gravar trechos de
vídeo que mostram o comportamento inadequado”, explicou a advogada, destacando
que essas provas podem ser importantes ao relatar o incidente à equipe de suporte
do jogo e que muitas plataformas levam essas denúncias a sério e têm
procedimentos bem específicos para analisar as evidências que são fornecidas
pelos jogadores.
Após a coleta das evidências e a denúncia na
plataforma do jogo on-line, a especialista destaca que é importante procurar
uma delegacia mais próxima ou acessar o site da Polícia Civil, onde há um canal
específico para denúncias online e que algumas delegacias também disponibilizam
sistemas online para verificar o estado dessas denúncias.
“É importante informar detalhadamente o ocorrido,
anexando as evidências e fornecendo informações que possam ajudar na
investigação. Informações precisas serão vitais, elas vão fornecer às
autoridades uma compreensão clara do ocorrido, facilitando a abertura de
investigações e aumentando as chances de resolução do caso. Por isso, eu
aconselho a descrição dos eventos de maneira cronológica, fornecendo nomes,
datas, locais e qualquer outra informação relevante que possa ajudar na
apuração dos fatos. É importante sinalizar também que a proteção dos
denunciantes sempre será uma prioridade”, destacou Cristina.
O QUE MAIS DIZ A LEI?
Originado do projeto de lei nº 4.224/2021
apresentado pelo deputado Osmar Terra (MDB-RS) e relatado no Senado em dezembro
pelo senador Dr. Hiran (PP-RR), o texto também transforma em crimes hediondos
vários atos cometidos contra crianças e adolescentes, como a pornografia
infantil, o sequestro e o incentivo à automutilação. A nova lei nº 14.811/24
inclui na lista de crimes hediondos:
Agenciar, facilitar, recrutar, coagir ou
intermediar a participação de criança ou adolescente em imagens pornográficas;
Adquirir, possuir ou armazenar imagem pornográfica
com criança ou adolescente;
Sequestrar ou manter em cárcere privado crianças e
adolescentes;
Traficar pessoas menores de 18 anos.
Atualmente, quem é condenado por crime considerado
hediondo, além das penas previstas, não pode receber benefícios de anistia,
graça e indulto ou fiança. Além disso, deve cumprir a pena inicialmente em
regime fechado. Na opinião de Cristina, a nova legislação representa um avanço
significativo no combate ao bullying e cyberbullying, justamente porque o
Estatuto da Criança e da Adolescente (ECA) passa a vigorar acrescido do artigo
59A que prevê que as instituições sociais, públicas ou privadas, que desenvolvam
atividades com crianças e adolescentes e que recebam recursos públicos, deverão
exigir e manter certidões de antecedentes criminais de todos os seus
colaboradores atualizadas. “A partir de agora a lei está instituindo um
procedimento específico com relação a tratamento de dados de colaboradores e
isso já gera uma conexão com a Lei Geral de Proteção de Dados que prevê
procedimentos específicos para quem realiza tratamento de dados pessoais aqui
no Brasil”, explicou a advogada especialista em Direito Digital e Privacidade
de Proteção de Dados.
AUMENTO DE PENA
O texto aumenta ainda a pena de dois crimes já
previstos no Código Penal. No caso de homicídio contra menor de 14 anos, a pena
atual, de 12 a 30 anos de reclusão, poderá ser aumentada em dois terços se o
crime for praticado em escola de educação básica pública ou privada. Já o crime
de indução ou instigação ao suicídio ou à automutilação terá a pena atual, de
dois a seis anos de reclusão, duplicada se o autor for responsável por grupo,
comunidade ou rede virtuais.
Na visão de Domingo Arjones, o aumento de pena
nesses casos é absolutamente necessário, principalmente em relação ao crime de
indução ou instigação ao suicídio. Ele cita como exemplo o caso do youtuber PC
Siqueira que foi encontrado morto em seu apartamento, no final de dezembro do
ano passado. Ele foi investigado por pornografia infantil, após o vazamento de
mensagens, e sofreu um cancelamento há cerca de três anos. Muitos internautas
fizeram comentários nas redes sociais instigando PC a tirar a própria vida.
“Eu acho que o aumento de pena nesse caso é
absolutamente necessário, porque a tendência é justamente aumentar o número de
delitos nesse sentido, a menos que se puna com mais rigor, no caso em concreto,
como os casos que nós temos acompanhado recentemente. Um youtuber cometeu até o
suicídio vítima de abuso por parte de uma fake news. A gente sabe que é
necessária [a punição] e que se tenha um controle maior. Então, essa
legislação, ela se adequa perfeitamente ao momento que nós vivemos. Não é um
problema circunstancial do Brasil, mas é um problema efeito também da
globalização”, afirmou o advogado criminalista, destacando que a lei foi uma
“bola dentro” do Congresso Nacional quanto à punição com mais rigor aos crimes
praticados nesse sentido.