No início de 2023, o mercado esperava que o ex-banqueiro Sergio Rial
fizesse uma revolução na Americanas. No entanto, em 11 de janeiro, poucos dias
após assumir o cargo de presidente, o executivo surpreendeu a todos ao anunciar
sua renúncia, após a descoberta de um rombo estimado em R$ 20 bilhões. Um ano
depois do caos causado pelas revelações, a Americanas conseguiu sobreviver e
fechou um acordo costurado a duras penas com os credores, mas hoje é uma rede
de varejo menor, que aposta na força das lojas físicas e em uma mudança no
digital, mais abalado pela crise.
Responsável por 13% das vendas pela internet no Brasil ao final de 2022,
a Americanas chegou a cair para apenas 4,3% no pior momento do ano passado.
"Sofremos uma baque no digital na partida, viemos recuperando parte disso
ao longo de 2023, mas ainda muito distante dos patamares de 2022, disse ao
Estadão/Broadcast o presidente da Americanas, Leonardo Coelho. A redução nas
vendas físicas, porém, foi menor, o que deu um certo fôlego à rede.
A Americanas nasceu um mês antes da quebra da Bolsa de Nova York, em
1929. E, 94 anos após o evento que desencadeou a maior crise financeira global,
a varejista protagonizou o maior escândalo contábil privado da história
brasileira. O caso colocou três dos maiores empreendedores do País no olho do
furacão: os bilionários Jorge Paulo Lemann, Carlos Alberto Sicupira e Marcel
Telles, acionistas de referência da companhia
O trio assumiu a empresa em 1982. Comandou uma revolução que transformou
a Americanas em uma das maiores varejistas do País, investida replicada no
varejo online a partir de 2006, ano da fusão entre a Americanas.com e o
Submarino, que criou a B2W.
Na década seguinte, a B2W competiu fortemente com rivais como Magazine
Luiza e Casas Bahia (então Via Varejo) pelo posto de campeã do e-commerce no
País, mas suscitava dúvidas no mercado. A empresa operava no vermelho desde
2011, e para financiar a expansão, recorreu a diversos aumentos de capital, o
último deles na pandemia, corrida que pode ter ajudado a ampliar o rombo.
No auge, em agosto de 2020, a empresa chegou a valer mais de R$ 111
bilhões. Entretanto, com a alta dos juros, o setor de varejo perdeu ímpeto, e o
valor caiu. Parte da perda foi recuperada a partir de agosto de 2022, quando
Rial foi anunciado. Em 11 de janeiro do ano passado, valia R$ 10,8 bilhões.
Mas, após a crise, esse número despencou. Hoje, a Americanas vale R$ 776
milhões - uma queda de 93%.
Conversas difíceis
Inicialmente, a varejista recusou o uso do termo fraude para explicar as
causas do rombo, mas após os resultados de uma investigação independente,
acabou adotando o termo e chegou à conclusão de que o rombo era maior, de R$
25,2 bilhões.
As primeiras conversas com os bancos, principais credores, foram tensas:
as instituições, em especial o BTG Pactual e o Bradesco, partiram para o
ataque, não poupando críticas ao trio de acionistas, acusados de saberem dos
problemas na rede. Foi preciso quase um ano de reuniões e acertos para um
acordo ser fechado, com o compromisso de que não haja litígios.
Em meio à crise, a Americanas viu o caixa minguar para cerca de R$ 800
milhões. Sobreviveu graças à recuperação judicial e a um empréstimo DIP
(debtor-in-possession, concedido a empresas em dificuldades) de R$ 2 bilhões
feito pelo trio, que evitou a necessidade de vender ativos a preços baixos ou
de contrair empréstimos mais caros, concedidos a empresas em crise.
No acordo fechado, os bancos converterão quase 80% de suas dívidas em
ações e o trio de acionistas vai colocar R$ 12 bilhões no grupo, incluído o
DIP, em um aporte total de R$ 24 bilhões. Com esse desenho, os bancos e os
acionistas de referência deterão 98% do capital da Americanas.
Daqui em diante
Após a crise e com um balanço saneado, a Americanas deve focar no
retorno às origens da operação física. Coelho define essa etapa como uma
retomada da simplicidade: o consumidor vai à Americanas porque sabe que lá vai
encontrar o que procura, mesmo quando não tem certeza do que quer, diz.
"A primeira parte do que a Americanas vai ser é o varejo do
sortimento do Brasil", afirma. No digital, a companhia manterá no estoque
próprio apenas o que espelhar os produtos presentes nas lojas físicas. O
restante será repassado a terceiros, que vão vender por meio dos sites do
grupo.
A competição segue acirrada, mas a crise da companhia levou a uma
mudança na configuração do setor. Dados da consultoria SimilarWeb compilados
pelo BTG apontam que a audiência perdida pelos sites da Americanas migrou para
dois titãs internacionais, o Mercado Livre e a Amazon.
A Americanas reduziu o contingente de funcionários de 43,2 mil, em
janeiro de 2023, para 32,5 mil, em dezembro. A empresa, diz, porém, que a
redução líquida no período é de cerca de 5 mil empregados, excluídos os efeitos
sazonais típicos do varejo, que contrata muitos funcionários temporários em
finais de ano. Boa parte da reestruturação feita no ano passado foi no digital,
com a redução de centros de distribuição, mas segundo Coelho, a cúpula também
ficou menor.
Hoje, além dele, a diretoria da Americanas conta apenas com a diretora
Financeira e de Relações com Investidores, Camille Faria. Os dois entraram após
a recuperação judicial, diante do afastamento de antigos diretores, implicados
na investigação da fraude. Até janeiro do ano passado, a companhia tinha quatro
diretores além do presidente, divididos por área de atuação.
Delação e cooperação
Se financeira e operacionalmente a Americanas conseguiu sobreviver ao
turbulento ano de 2023, o rombo ainda deve gerar ruído. Ex-diretores da
companhia fecharam em agosto um acordo de delação premiada e, em uma estratégia
inédita para investigar uma empresa, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM)
fechou acordo com pessoas envolvidas no caso Americanas em busca de cooperação
para apurar o que ocorreu.
Em outra frente de investigação, o Comitê Independente criado pelo
conselho de administração para apurar as circunstâncias que ocasionaram a
fraude ainda não revelou o resultado de seu trabalho e, em dezembro, disse que
a publicação de um documento preliminar poderia levar a "juízos
preliminares inadequados".
Procurado, o ex-presidente da empresa, Sergio Rial, que tornou pública a
fraude, não se manifestou.
Por Correio24horas