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Unicef / ONU
A crescente
demanda por diversos tratamentos de TEA (transtorno do espectro autista) no
Brasil se tornou um dos principais gargalos para planos de saúde do país, que
reconhecem a insuficiência das redes conveniadas e falta de profissionais
qualificados. Como reflexo, explodiram as reclamações de usuários e ações na
Justiça contra empresas do setor, motivadas por frequentes negativas de
cobertura, descredenciamento de clínicas e cancelamento de contratos, entre
outros fatores.
De janeiro
a outubro, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) recebeu mais de 12 mil
queixas relacionadas à assistência de pacientes autistas -praticamente o dobro
das reclamações registradas em todo o ano passado e alta de 1.000% na
comparação com 2019. Hoje, uma em cada cinco NIPs (Notificações de
Intermediação Preliminar) recebidas pela agência está relacionada a TEA. Neste
ano, as queixas mais frequentes foram sobre prazos para atendimento (3.426),
reembolso (2.670) e rede conveniada (1.951).
O aumento
da pressão sobre o setor de saúde suplementar está associado não só à maior
demanda -os diagnósticos crescem em todo o mundo-, mas também a recentes
mudanças regulatórias. Desde o ano passado, convênios são obrigados a cobrir
qualquer método indicado pelo médico assistente para o tratamento de pacientes
autistas e com outros transtornos globais do desenvolvimento. A ANS já havia
derrubado, em 2021, o limite de sessões com psicólogos, terapeutas ocupacionais
e fonoaudiólogos para o tratamento, terapias com procura cada vez maior.
A
neuropsicóloga Joana Portolese explica que o TEA abarca um grupo muito
heterogêneo de pacientes, divididos entre casos leves, moderados e severos. Em
geral, o transtorno é acompanhado de prejuízo sensório-motor e outras
comorbidades, o que torna o tratamento multidisciplinar fundamental para o
desenvolvimento das crianças.
"Aproximadamente
30% das crianças são não verbais, quase 40% têm deficiência intelectual, e você
tem também crianças com síndromes genéticas e quadros neurológicos. Então a
gente fala que cada paciente precisa de um apoio específico, mas de maneira geral
as intervenções baseadas em evidências são as terapias comportamentais de
desenvolvimento naturalista", afirma Portolese, citando seletividade
alimentar, dificuldade motora e sensibilidade visual entre as manifestações
clínicas mais frequentes do autismo.
Há quatro
anos, Portolese coordena o Ambulatório de Autismo do Instituto de Psiquiatria
do Hospital das Clínicas, em São Paulo. O serviço, que oferece diagnóstico e
encaminhamento médico gratuitamente, tem sido cada vez mais procurado, com
destaque para o aumento das crianças com menos de três anos. "É difícil
apenas um profissional dar conta de toda essa complexidade. Então o tratamento
envolve algumas horas de terapias específicas por semana, até diárias,
dependendo muito do perfil da criança e os objetivos em relação ao
desenvolvimento."
A ampliação
da cobertura e busca cada vez maior pelo tratamento tiveram como consequência o
aumento dos processos judiciais contra convênios médicos. No TJ-SP, o número de
ações contra planos de saúde cresceu 17% no último ano, e as alterações
regulatórias pela ANS são apontados por especialistas como importantes fatores
de pressão.
Segundo a
advogada especialista em direito à saúde Estela Tolezani, sócia do escritório
Vilhena Silva Advogados, as redes conveniadas têm se mostrado insuficientes
para o volume de atendimento.
"Hoje
os planos indicam clínicas credenciadas, mas aí quando a criança começa o
tratamento, a sessão que deveria ter uma hora, dura 30 minutos, porque a
demanda é muito grande. Também tem respostas de clínicas no sentido de que não
tem vaga, só daqui a três meses. Ou então fica muito distante da residência da
criança", afirma Tolezani.
Tais
problemas estariam motivando muitos pais a buscarem, através do Judiciário, o
reembolso integral pelo tratamento em serviços não credenciados. "Uma
coisa que tenho visto nos relatórios e que antes não tinha são os médicos
atestando que a criança estava há meses numa determinada clínica mas não tinha
evolução nenhuma, ou pior, com regressão", acrescentou a advogada.
Foi
exatamente o que aconteceu com o filho da farmacêutica Karina Cadette, 41,
conforme atestado pela psiquiatra do menino, que tem 9 anos, após três meses de
tratamento em uma clínica indicada pelo convênio médico. "Quando troquei
de plano, recebi a indicação de uma clínica própria da operadora. Ficava perto
de casa, mas era muito lotada, com profissionais que não se encaixavam dentro
do que o Rafael precisava e sem horários", disse.
Diagnosticado
com autismo severo desde os dois anos, Rafael tem rotina de tratamento que
envolve diferentes especialidades com indicação médica: métodos ABA (Análise do
Comportamento Aplicada, do inglês Applied Behavior Analysis), psicologia,
terapia ocupacional, psicomotricidade e técnica Prompt de fonoaudiologia.
Diante da
falta de profissionais habilitados no serviço indicado pelo plano, a mãe
decidiu recorrer à Justiça para que a empresa a reembolsasse pelo tratamento em
outras clínicas, que custa em torno de R$ 10 mil por mês. "Em poucos meses
já consigo perceber melhora na evolução dele", disse Cadette.
Entre
agosto e novembro, o gabinete da deputada estadual Andrea Werner (PSB)
-fundadora do Instituto Lagarta Vira Pupa, que defende os direitos de pessoas
com deficiência– recebeu cerca de 300 denúncias de descredenciamento de
clínicas e profissionais por 15 planos de saúde. São casos de pacientes que
foram encaminhados para serviços próprios das operadoras, mas se depararam com
problemas no atendimento. Outras denúncias recebidas pela deputada, sobre
cancelamento unilateral de contratos de pacientes autistas por operadoras, são
investigadas pelo MP-SP (Ministério Público de São Paulo) desde maio.
"A
maioria de nós autistas não consegue atendimento de qualidade na rede
credenciada e por isso judicializa. A regulamentação aprovada pela ANS foi um
avanço, mas não se mostrou suficiente para refletir no aperfeiçoamento do
serviço prestado", afirma a advogada do instituto Carolina Nadaline,
defendendo maior fiscalização da agência governamental sobre as empresas da
saúde suplementar.
O setor,
atualmente com 50,9 milhões de usuários, reconhece a formação de um gargalo e
dificuldade de atendimento. Em pesquisa feita com oito empresas associadas, a
FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), que representa os maiores
planos do país, confirma a existência de vazios assistenciais e falta de
profissionais capacitados em diversas terapias.
"Existe
uma dificuldade, até em função do aumento muito expressivo dessa demanda, de
você encontrar profissionais para atender todos. Da forma como foi feito, sem
definir um protocolo e criar delimitações, isso trouxe a explosão da procura
por essas terapias e um movimento de pedidos de reembolsos em grandes
volumes", afirma Vera Valente, diretora-executiva da entidade, cujas
associadas respondem por cerca de 32% dos vínculos da saúde suplementar do
país.
A executiva
afirma que a ampliação do acesso sem a definição de diretrizes e linhas de
cuidado favoreceu abusos e fraudes. O setor de planos de saúde brasileiro
atravessa uma de suas piores crises, com prejuízo recorde de R$ 11,5 bilhões no
ano passado.
A pesquisa
da FenaSaúde também identificou aumento das solicitações de terapias
desconhecidas ou sem eficácia comprovada.
A Abramge
(Associação Brasileira de Planos de Saúde), que reúne 142 operadoras de
pequeno, médio e grande porte -e que juntas correspondem a 36% do mercado-
identificou os mesmos problemas no último ano. Ambas as entidades dizem que
suas associadas estão ampliando os serviços próprios e capacitando
profissionais.
"A
gente se preocupa muito com a segurança e eficácia das terapias que estão sendo
propostas. Todos tiveram que se adequar para dar melhor assistência para o
beneficiário, apesar de não haver uma orientação de linha de cuidado pelo órgão
regulador", disse Cássio Ide Alves, superintendente médico da Abramge. Ele
defende um protocolo com a hierarquização do atendimento, já que o país não tem
profissionais sênior em quantidade suficiente para a atual demanda.
Sufocadas
financeiramente, as empresas articulam pressão à agência reguladora. "A
gente já se junta e conversa muito com associações de pacientes e com outras
entidades profissionais, e estamos tentando viabilizar uma proposta de
alteração do rol para a ANS. Queremos fazer isso com uma frente ampla, não só
as empresas do setor", disse Alves, que nega se tratar de uma tentativa de
limitar o acesso.
"Enquanto
não tiver regulação adequada sempre terá gargalo, porque tem muita gente
utilizando de forma inadequada", acrescentou o superintendente médico.
Em outubro,
a ANS promoveu uma audiência pública para debater a assistência aos
beneficiários de TEA pela saúde suplementar e a atuação da agência reguladora.
Entre os convidados, havia sete representantes do setor, quatro representantes
de conselhos profissionais e uma associação de apoio a pacientes.
Procurada,
a agência disse por meio de nota que fiscaliza a atuação das operadoras de
forma planejada e preventiva. Entre as ações citadas está a suspensão
temporária da comercialização de planos em função de reclamações.
"É
preciso destacar, ainda, que a Agenda Regulatória 2023-2025 da ANS prevê a
realização de estudos para formular uma proposta de criação de incentivos às
operadoras para melhorar seu desempenho no relacionamento com seu consumidor, a
fim de buscar a solução de conflitos de modo autônomo", conclui a nota.