Foto: Lalo de Almeida / Folhapress
O rio
Solimões é uma veia central da Amazônia. Carrega ancestralidade, conecta
regiões e países, dá vida a uma infinidade de comunidades tradicionais em suas
margens e nas margens de afluentes e igarapés.
O trecho
que banha a Terra Indígena Porto Praia de Baixo, na região de Tefé (AM), virou
deserto. O rio caudaloso, que ditava o ritmo da comunidade, foi substituído por
enormes bancos de areia a perder de vista.
Kokamas,
tikunas e mayorunas cruzam esses bancos de areia de margem a margem, de ponta a
ponta da terra indígena, em uma imagem que lembra um deserto.
A
transformação é uma situação extrema: os indígenas de Porto Praia são unânimes
em apontar a seca de 2023 como a pior já vista, superando os efeitos da
estiagem de 2010.
O rio secou
muito, os bancos de areia são mais extensos, os barcos ancoram cada vez mais
longe, a estiagem já dura mais tempo e a expectativa é de que esse cenário de
deserto continue até novembro.
"A
gente tem de tirar esses barcos daqui hoje, senão tudo vai estar atolado
amanhã", dizia um dos indígenas de Porto Praia nesta sexta-feira (13), em
relação a cerca de 30 barcos parados em frente à comunidade. "O rio segue
descendo", diz.
A Folha de
S.Paulo esteve pela primeira vez na terra indígena em 23 de agosto de 2022. Era
o início da estiagem, que se mostrou severa no ano passado, mas havia um rio no
lugar. "A gente ainda pescava bem em setembro", relembra um
integrante da comunidade. Bancos de areia só se formaram em outubro daquele
ano.
Em 2023, o
cenário encontrado é outro -e a transformação tem contornos dramáticos. O rio
secou em setembro, e os níveis de água diminuem a cada dia, sem previsão de
fim.
Em 2022,
chegar ao território foi simples: 30 minutos de barco de Tefé à escada de
acesso à comunidade. Agora, os barcos só chegam a dois quilômetros da aldeia. É
preciso percorrer a pé a margem enlameada do rio. Outro percurso possível é
pelos bancos de areia, contornando poças de água que resistem à estiagem.
"É
tudo muito triste. Não tem como sair para pescar, ou levar nossos produtos para
vender na cidade", afirma o cacique Amilton Braz da Silva Kokama, 52. As
mais de 100 famílias do território produzem principalmente farinha e banana.
Os
indígenas improvisam pequenas dragagens, tentando abrir caminho para a água e
para os barcos. Funciona muito pouco. A cada dia, há menos água.
O deserto
que se formou é cruzado por quem insiste na pesca num lago após a margem
oposta. Ou por carregadores de produtos da cidade e de motores dos barcos
deixados a quilômetros da comunidade.
O medo é de
que os motores sejam roubados por piratas, comuns no médio Solimões. Eles
seguem atuando mesmo na estiagem severa.
A
reportagem esteve em Porto Praia em 2022 para uma série sobre terras indígenas
não demarcadas, como é o caso do território.
Os
indígenas fizeram uma autodemarcação, como forma de proteção contra invasores,
especialmente madeireiros e pescadores ilegais, e montaram uma guarda para
vigiar e combater a atuação de piratas no Solimões.
Pouco mais
de um ano depois, a conversão de um rio em deserto alterou a escala de
preocupações na comunidade.
"A
mortandade de peixes foi enorme, como não ocorreu na seca de 2010", diz o
cacique. "Aqui não 'fechava' assim. Ficavam uns poços mais
profundos."
Um poço
artesiano garante o consumo de água pelas famílias. Porto Praia insiste em
contornar o isolamento: os indígenas tentam acessar lagos para pesca e a cidade
de Tefé, onde vendem seus produtos. O rio segue em vazante, um indicativo de
que a seca ainda vai avançar nesse ponto do Solimões.
A realidade
na aldeia Nova Esperança do Arauiri, da Terra Indígena Boará/Boarazinho, também
é de isolamento -o igarapé Paranã do Arauiri virou um estreito curso d'água,
com água parada, aquecida, enlameada e fétida. As embarcações não alcançam mais
o Solimões. Para chegar à aldeia é preciso percorrer dois quilômetros por uma
trilha improvisada diante da sequidão do igarapé.
Nova
Esperança vive um crônico problema de falta d'água. Até um mês atrás, a
comunidade não tinha alternativa senão usar a água barrenta do igarapé. O
resultado foi uma "pandemia" -palavra usada pelo cacique Cláudio
Cavalcante, 44- de diarreia, vômito, febre e dor de estômago, especialmente
entre as crianças.
A
instalação de placas solares no mês passado permitiu o bombeamento de água de
um lago próximo, mas a qualidade segue ruim. Segundo o cacique, não houve
capacitação para que as famílias pudessem tratar e filtrar a água, que também é
captada das esparsas chuvas na estiagem.
Os
problemas de saúde decorrentes do consumo dessa água prosseguem. Quando a
reportagem esteve na comunidade, quatro pessoas estavam doentes, com diarreia.
Procurados,
o governo do Amazonas, a prefeitura de Tefé e a Funai (Fundação Nacional dos
Povos Indígenas) não responderam até a publicação desta reportagem.
A Defesa
Civil levou água potável às 17 famílias kokamas de Nova Esperança, mas em
quantidade insuficiente.
"Com
urgência, a gente precisa de água, de capacitação para o tratamento e de
medicamentos para diarreia, infecção intestinal e vômito", diz Cavalcante.
O cacique prevê uma seca ainda mais prolongada: o rio só estará navegável no
fim de novembro. "A seca de 2010 não foi tão difícil como essa. Com
certeza esta é a pior que já tivemos aqui dentro."
O
encolhimento do igarapé impede o transporte até Tefé do milho, da banana e da
melancia cultivados pelos indígenas. "O sol foi tão quente nessa região
que atrapalhou a plantação. Secou a plantação de melancia", afirma
Cavalcante.
Sem água
para beber, foi necessário paralisar as aulas das crianças. Nada é mais urgente
na aldeia do que a busca por uma solução para que as famílias tenham água
potável durante o prolongamento da seca.
"A
gente sofre com a 'pandemia' dessas doenças todo ano. Mas este ano foi pior, já
começou em agosto", diz o cacique. "A gente não consegue tratar a
água."