Foto: Pedro Ladeira / Folhapress
A presidente do STF (Supremo Tribunal Federal),
ministra Rosa Weber, votou a favor da descriminalização do aborto nas 12
primeiras semanas de gestação. A ação que trata do caso começou a ser julgada
nesta sexta-feira (22) virtualmente no Supremo, mas um pedido de destaque
apresentado pelo ministro Luís Roberto Barroso jogou a ação para o plenário físico
da corte, em data ainda não definida.
Rosa pautou a ação —da qual é relatora— no sistema
eletrônico para conseguir apresentar o seu voto antes de deixar a corte. Em 2
de outubro, ela completa 75 anos, limite de idade para a aposentadoria de
ministros do STF.
Barroso é o próximo presidente do STF e, nessa
função, caberá a ele pautar o processo no plenário físico.
A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental) 442 foi apresentada pelo PSOL em 2017, foi tema de audiência
pública em 2018 e foi a julgamento no plenário virtual.
Em seu voto, Rosa argumentou que a fórmula
restritiva sobre aborto que vigora hoje no Brasil não considera "a igual
proteção dos direitos fundamentais das mulheres, dando prevalência absoluta à
tutela da vida em potencial (feto)".
"Desse modo, entendo que a criminalização da
conduta de interromper voluntariamente a gestação, sem restrição, não passa no
teste da subregra da necessidade, por atingir de forma o núcleo dos direitos
das
mulheres à liberdade, à autodeterminação, à
intimidade, à liberdade reprodutiva e à sua dignidade", escreveu a
ministra.
Ele criticou a criminalização do procedimento e
destacou que essa perspectiva para lidar com problemas que envolvem o aborto
não é a política estatal adequada.
"A justiça social reprodutiva, fundada nos
pilares de políticas públicas de saúde preventivas na gravidez indesejada,
revela-se como desenho institucional mais eficaz na proteção do feto e da vida
da mulher comparativamente à criminalização".
"Com efeito, a criminalização do ato não se
mostra como política estatal adequada para dirimir os problemas que envolvem o
aborto, como apontam as estatísticas e corroboraram os aportes informacionais
produzidos na audiência pública", disse.
No final de seu voto, Rosa destacou ainda que as
mulheres eram excluídas da condição de "sujeito de direito" na década
de 1940, data do Código Penal que criminalizou o aborto "de forma
absoluta".
"A dignidade da pessoa humana, a
autodeterminação pessoal, a liberdade, a intimidade, os direitos reprodutivos e
a igualdade como reconhecimento, transcorridas as sete décadas, impõem-se como
parâmetros normativos de controle da validade constitucional da resposta
estatal penal", disse.
Nesta quarta (20), a CNBB (Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil), a Frente Parlamentar Mista contra o aborto e em defesa da
vida, a União dos Juristas Católicos de São Paulo e o Instituto de Defesa da
Vida e da Família protocolaram um pedido para levar o julgamento ao ambiente
presencial. A Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) também
peticionou a retirada da ADPF da pauta.
O QUE PEDE A AÇÃO?
A ADPF pede ao STF que analise a
constitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal, de 1940. O artigo
124 prevê pena de detenção de 1 a 3 anos para quem "provocar aborto em si
mesma ou consentir que outrem lho provoque" e o artigo 126 estipula
reclusão de 1 a 4 anos para quem "provocar aborto com o consentimento da
gestante".
Atualmente, as únicas três situações em que o
aborto não é criminalizado no país são em caso de estupro, quando a gestação
gera risco de vida para a gestante e, por decisão do STF, quando é constatada
anencefalia fetal.
A ADPF argumenta que a lei atual leva mulheres e
meninas a procurar métodos inseguros, pondo suas vidas em risco. De 2008 a
2017, foram 2,1 milhões de internações no país para tratar complicações de
abortos, gerando um gasto de R$ 486 milhões para o SUS. De 2000 a 2016, ao
menos 4.455 pacientes morreram.
O documento aponta que, enquanto aquelas com
melhores condições financeiras buscam clínicas clandestinas, pacientes pobres
se submetem a tratamentos desumanos, e ressalta um recorte racial. Pesquisa
publicada recentemente na revista Ciência & Saúde Coletiva mostra que a
probabilidade de se fazer um aborto é 46% maior para mulheres negras.
A ação defende que a criminalização viola a
dignidade da pessoa humana, os preceitos da cidadania e da não discriminação,
bem como o direito à inviolabilidade da vida, liberdade, igualdade, saúde,
planejamento familiar e a proibição de tortura ou tratamento degradante
previstos na Constituição Federal.
"No Estado democrático de Direito,
pressupõe-se que o papel do Poder Judiciário, a partir da interpretação da
Constituição, é a proteção dos direitos humanos e dos princípios e garantias
internacionais. Caso eles sejam violados, cabe ao Judiciário incidir e impedir
a violação", afirma a vereadora Luciana Boiteux, professora da UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) e uma das autoras da ADPF.
"O que está em jogo é o reconhecimento da
cidadania das mulheres e a igualdade de gênero, que é uma luta ainda incompleta
no Brasil", defende a advogada, que observa o amadurecimento da corte em
relação à temática. Exemplos disso são a permissão da fertilização in vitro,
processo em que há descarte de embriões, a liberação de pesquisas com
células-tronco e a inclusão de anencefalia nas exceções do aborto legalizado.
O QUE DIZ O OUTRO LADO?
A AGU (Advocacia-Geral da União) defende que o tema
não deveria ser tratado no Supremo, mas sim no Congresso, sob pena de
"grave dano ao Estado brasileiro e aos seus cidadãos, que têm debatido
amplamente a questão por meio de seus representantes no Parlamento".
"Trata-se, de fato, de questão extremamente
delicada sob os aspectos jurídico, moral, ético e religioso, a demandar
cautelosa análise por parte das instituições estatais, sem que se possa
prescindir da efetiva participação da sociedade", complementa a AGU.
Esse também é o ponto de entidades que pediram para
participar como amicus curiae (amigo da corte), expressão que designa um
terceiro autorizado a ingressar na ação para fornecer subsídios ao órgão
julgador. A ADPF 442 tem dezenas de amici curiae de ambos os lados.
"A CNBB entende que a ADPF 442 não deveria
sequer ter sido recebida pelo STF, uma vez que se está diante do caso mais
flagrante de desrespeito e invasão de uma competência típica do Parlamento já
protagonizado pelo Supremo. A matéria do aborto é exaustivamente tratada pela
norma brasileira, que aponta as hipóteses de excludente de ilicitudes.
Modificar ou ampliar as hipóteses legais constitui escandaloso episódio de
desrespeito às prerrogativas do Congresso Nacional", diz Hugo Sarubbi
Cysneiros, advogado da CNBB.
"Além das leis brasileiras que tratam do tema,
o Brasil é signatário de inúmeros tratados internacionais que regulam esse
objeto, não havendo em nenhum deles nada que permita essa atuação do STF",
complementa.
Ele afirma ainda que a ação é baseada em princípios
inexistentes: da irrelevância jurídica da vida intrauterina até a 12ª semana de
gestação; da proteção gradativa da vida, pelo qual a vida humana tem proteção
variável a depender do seu estágio; e do direito ao aborto.
Em carta aberta ao STF, a Anajure também
apresenta-se como contrária à ADPF, afirmando que eventual decisão ocasionaria
graves prejuízos à proteção ao direito fundamental à vida do nascituro.
O CFM (Conselho Federal de Medicina) é outra
entidade que se opõe à análise em plenário virtual e que defende a discussão no
Congresso. Em nota divulgada nesta quinta (21), a entidade reitera que defende
o cumprimento da legislação atual, que permite o aborto apenas em três
situações.
ENTIDADES FAVORÁVEIS
Entre os amici curiae favoráveis à
descriminalização está a organização Católicas pelo Direito de Decidir.
"Sendo o Brasil um Estado laico, não deve se submeter a nenhuma
religião", diz a socióloga Maria José Rosado Nunes, uma das fundadoras da
entidade.
"As pesquisas sobre aborto evidenciam que são
as mulheres cristãs as que mais abortam, contrariando as hierarquias e
doutrinas religiosas conservadoras. É por essas mulheres anônimas, que
compartilham a mesma fé que nós, que entendemos a importância e a força de nos
posicionarmos de modo divergente desse poder hierárquico e patriarcal."
A Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de
Ginecologia e Obstetrícia), por sua vez, defende ser inadmissível que, diante
da possibilidade de realizar um procedimento seguro, cerca de meio milhão de
mulheres sigam realizando abortos todos os anos, sob o risco de grave
adoecimento ou morte.