O brasileiro está comendo mais ultraprocessados. Mas a boa notícia é que, pelo menos por enquanto, ainda predomina no país o costume de "comida de verdade", preparações culinárias com alimentos naturais ou minimamente processados, como leite, farinhas e arroz.
O cenário de expansão de ultraprocessados, contudo, é preocupante, segundo especialistas.
Essa é a conclusão de um estudo de pesquisadores Nupens (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde/USP) e da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) recentemente publicada na Revista de Saúde Pública.
Para o estudo, os cientistas usaram dados das Pesquisas de Orçamentos Familiares, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que correspondem ao período de 1987 até 2018. Eles observaram os produtos que foram adquiridos pelas famílias, e não o consumo em si dos alimentos, apesar de, logicamente, as duas ações terem correlações.
Com isso, puderam agrupar os itens possivelmente consumidos a partir da classificação Nova, desenvolvida no próprio Nupens —e utilizada e reconhecida internacionalmente— e que divide os alimentos em quatro grupos: in natura ou minimamente processados; ingredientes processados (como azeite, manteiga e açúcar); alimentos processados (como conservas de legumes, queijos e pães artesanais); e alimentos e bebidas ultraprocessados.
Comer qualquer coisa excessivamente é prejudicial. Mas, em linhas gerais, é no último grupo, o dos ultraprocessados, com seus aditivos, que mora o maior problema. Nessa classe estão refrigerantes, bebidas lácteas, margarinas, salgadinhos de pacote, doces, sorvetes, pães embalados e uma lista sem fim de produtos.
Já há uma considerável e ainda crescente literatura científica que aponta os riscos envolvidos no consumo em maior volume de ultraprocessados, como cânceres, diabetes e outras doenças crônicas.
Na pesquisa de orçamento do IBGE feita no período 2017-2018, a mais recente disponível, quase 49% das calorias disponíveis nos lares de todo o Brasil eram provenientes de alimentos in natura ou minimamente processados. Outros 32% eram derivados de ingredientes e alimentos processados. Por fim, cerca de 19% vinham de ultraprocessados.
"O Brasil tem uma cultura alimentar muito enraizada e isso favorece que a gente mantenha uma alimentação baseada em preparações culinárias", afirma Renata Levy, uma das autoras do estudo e pesquisadora do Nupens. "Há situações como a do Reino Unido e Estados Unidos onde 60% da alimentação vem de alimentos ultraprocessados."
Apesar da ainda predominante cultura brasileira de comida caseira, a situação tem mudado com o passar das décadas. Os ultraprocessados têm comido o seu espaço na vida dos brasileiros, ao mesmo tempo em que diminui o consumo de alimentos in natura/minimamente processados (conhecidos como grupo 1 da classificação Nova).
Segundo a pesquisa do Nupens, considerando só as regiões metropolitanas no país, em 30 anos, os ultraprocessados (grupo 4 da classificação Nova) saíram de 10% e saltaram para quase 24% de participação na dieta das pessoas. Considerando todo o país, os números passaram de 14,3%, em 2002-2003 (primeira pesquisa para o Brasil inteiro), para cerca de 19%, em 2017-2018
O aumento da presença do grupo 4 também é visto na zona rural brasileira, saindo de 7,4%, em 2002-2003, para 11,5%, em 2017-2018.
Nos últimos anos da pesquisa, porém, a expansão dos ultraprocessados perdeu velocidade.
A pesquisa com base nos dados do IBGE mostra que no Sul, Sudeste, áreas metropolitanas, no meio urbano e em famílias com maior renda, os ultraprocessados já compõem cerca de 20% do que é comprado como alimento para a casa.
Uma maior presença de ultraprocessados na vida das pessoas é uma tendência —preocupante— mundial. "Eles trazem uma força muito grande de venda, de mercado, de marketing de multinacionais. São alimentos que têm apelo. Eles estão em todos os lugares, você consegue consumir fazendo diversas coisas ao mesmo tempo, qualquer lugar que você olha você vê. Eles têm essa praticidade que é atrativa", afirma a pesquisadora do Nupens.
O estudo observou que, conforme aumenta a renda, diminui a fatia dos alimentos in natura/minimamente processados e de ingredientes processados na despensa das casas. Nas últimas pesquisas de orçamento, porém, houve uma estabilização na aquisição de ultraprocessados nas famílias com a maior faixa de renda. Levy diz que isso pode significar uma conscientização em relação aos riscos de uma alimentação prejudicial à saúde.
Mas, ao mesmo tempo, famílias com rendas menores permanecem em uma situação de aumento constante de consumo de ultraprocessados —apesar de, em números totais, ainda consumirem menos produtos do grupo 4, quando comparado à fatia mais abastada.
Os pesquisadores afirmam que isso se relaciona aos preços ainda mais elevados dos ultraprocessados. O problema é que a situação está mudando.
Existe uma tendência que alimentos saudáveis, ou seja, especialmente os in natura/minimamente processados, fiquem mais caros em comparação aos não saudáveis —ultraprocessados.
Pesquisadores esperavam que essa mudança ocorresse só no meio da década, mas a pandemia de Covid e fenômenos climáticos —que devem crescer com a crise climática— aceleraram o passo. "A nossa estimativa indica que essa transição estaria acontecendo nesse exato momento", afirma Rafael Claro, pesquisador da UFMG e um dos autores do estudo.
A situação será de difícil reversão, diz Claro.
E por que ocorre essa diferença de preços entre industrializados e produtos saudáveis? A situação pode ser explicada pela margem de manobra, ou seja, grandes empresas conseguem amortecer melhor impactos econômicos.
"O Seu João, que vende pimentão, não tem o que fazer. Ele tem três insumos: sementes, fertilizante e água, além da cadeia de transporte. Quando algo der errado, ele não tem outro mecanismo que não seja transferir isso para o preço", diz Claro.