Reportagem originalmente publicada no Jornal da Metropole, em 3 de fevereiro de 2022
Há exatos 30 anos, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) chegava mais longe que qualquer outra no Brasil: derrubava um presidente. A investigação contra Fernando Collor de Mello e seu relatório final foram as peças que faltavam para dar início ao pedido de impeachment.
Nos anos seguintes, outras comissões também ganhariam destaque no país, a exemplo da CPI do Painel (2001), do Mensalão (2005) e mesmo, mais recentemente, da Covid (2021).
Na Bahia, o caminho trilhado está longe de ser parecido. As CPIs são encerradas an- tes mesmo de começar. Outras se perdem no tempo e no espaço, finalizadas sem a execução de um relatório final. A experiência mais recente foi a tentativa de instaurar uma comissão para investigar o grupo Neoenergia, que administra a Coelba.
Proposto em novembro pelo deputado Tum (PSC), e apresentado com o aval de 39 deputados — 18 a mais que o mínimo necessário —, o requerimento de CPI prevê investigar ações e omissões da empresa que registrou lucro de R$ 10 bilhões no primeiro quadrimestre de 2020 e ocupa o topo do ranking de reclamações do Procon-Bahia.
A comissão, no entanto, mal nasceu e já enfrentou todos os percalços possíveis. Ainda em novembro, Tum afirmou que a concessionária de energia teria assediado parlamentares para uma reunião a “portas fechadas”. Logo depois, a bancada de oposição decidiu retirar as assinaturas de apoio à abertura da CPI. A decisão foi justificada pelas tentativas do bloco governista de emplacar presidência e relatoria do colegiado. O im passe atrasou a abertura dos trabalhos antes do recesso parlamentar.
Com o retorno das atividades neste começo de fevereiro, ainda há uma expectativa que a comissão finalmente ande, embora a dinâmica política (em ano eleitoral) e o retrospecto da Casa indiquem justamente o contrário.
Um levantamento feito pelo Jornal da Metropole mostra que, em toda história moderna da AL-BA, apenas quatro comissões tiveram algum tipo de andamento. A própria Casa não trata com cuidado o histórico das investigações ocorridas. Em documento enviado à reportagem, pela assessoria de imprensa da AL-BA, há uma relação com 50 CPIs listadas, sendo a primeira delas em 1979, sobre grilagem de terras. O levantamento, no entanto, não explicita quantas foram apenas requerimentos iniciais, quantas foram efetivamente instauradas e finalizadas, ou ainda o registro dos relatórios propostos pelos parlamentares, que deveriam representar um resultado concreto para a sociedade.
Para o cientista político Cláudio André de Souza, professor e pesquisador da UNILAB (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira), três elementos impedem que a Bahia crie uma tradição investigativa em seu braço legislativo. São elas: “1) a vontade de trabalhar, já que criar uma CPI dá trabalho; 2) a cultura política, que faz o legislativo não se enxergar como fiscalizador e 3) o sentimento de cavalheirismo entre os parlamentares”.
Souza ainda pontua que, em casos envolvendo grandes empresas — exatamente o que ocorre na CPI da Coelba — há uma predisposição entre muitos parlamentares em não se envolver diretamente nestas questões.
“Até 2016 tínhamos o financiamento empresarial em campanhas políticas, então a relação de políticos passava por esses interesses privados, isso pode ser um dos motivos, uma parte pode não querer mexer na outra. Em geral, no Brasil, quem tem a maioria são os governos e nenhum governo quer uma CPI. Isso se aplica também as Câmaras Municipais”, pontua o cientista político.
De fato, a Câmara Municipal de Vereadores de Salvador (CMS) também não passa ilesa. Em toda sua história não há um único registro de CEI (Comissão Especial de Inquérito), equivalente à CPI, instaurada no plenário Cosme de Farias.
Em comparação, na Câmara Municipal de Feira de Santana, segunda maior cidade da Bahia, está em curso uma investigação sobre despesas e contratações de pessoal na Secretaria Municipal de Saúde durante a pandemia. Em Cruz das Almas, cidade com 60 mil habitantes, uma comissão apu- ra a morte de um paciente por suposto erro médico e falsificação de assinatura.
ENGAVETAMENTO
A força política dos agentes investigados, em contraste com o apoio das bancada que costumam alinhar a AL-BA e CMS, levam a inúmeros casos de engavetamentos de comissões nestas duas casas.
O exemplo mais marcante foi a CPI dos Grampos, em 2003. O inquérito aberto para apurar o caso dos grampos telefônicos, em acusações feitas a Antônio Carlos Magalhães, teve maioria para indicar o presidente e o relator da CPI, além de também conseguir uma ampla vantagem sobre a oposição: formar a comissão por cinco parlamentares do governo, contra três que não seguiam a liderança de ACM. Aberta em seu primeiro dia de trabalho, a CPI durou apenas dez minutos, sendo arquivada “por falta de objeto”.
“O engavetamento aqui seria usado entre aspas para demonstrar que, na verdade, nenhuma informação concreta foi apurada. Outro ponto é que, da forma que são realizadas as composições dessas comissões, elas já iniciam comprometidas. Mas a nossa cultura de investigação não é forte porque, a despeito das divergências ideológicas que existem entre os deputados, existe uma preocupação corporativa que, a partir de um fato apurado, isso pode trazer muitas consequências negativas, não só para um determinado político, mas também para as pessoas que ele faça algum tipo de aliança”, diz a advogada, professora e especialista em direito eleitoral, Érica Silva Teixeira.
Érica também explica que os parlamentares possuem especial atenção durante as eleições — lembrando que elas ocorrem a cada dois anos, para renovar mandatos na Câmara Municipal e também Assembleia Legislativa.
“A CPI tem esse cheiro de fumaça do bom direito, de que se está apurando um fato, ainda que não tenha se chegado a conclusão nenhuma. Se a gente olha para CPI da Covid, como exemplo, a medida que os fatos vão se apresentando começam a bater em muitas portas, não só quem está no governo, mas também quem está na oposição. Independente do desfecho, e que no Brasil isso acaba não sendo uma preocupação, o fato político narrado acaba sendo muito preocupante, sobretudo em ano eleitoral”, pontua a especialista.
CPI da Grilagem
No dia 28 de abril de 1977 a Assembleia Legislativa da Bahia realizou a instauração da CPI da Grilagem. A Comissão partiu de denúncias
feitas pelo jornal Folha de São Paulo e pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia (FETAG). Na ocasião, os meios de comunicação afirmavam que, ao longo de 1975, a Bahia era o estado com a maior incidência de conflitos de terra, 20 casos.
A CPI da grilagem da Bahia finalizou as suas atividades em março de 1981 sem levar a cabo todas as investigações a que se propôs. O relatório final de nove páginas traz apenas breves considerações sobre as investigações e propostas de políticas públicas a serem tomadas. O relatório enfatizou ainda que alguns casos não se configuraram como grilagem, mas como questão de terras a serem resolvidas pelo Poder Judiciário.
CPI do Combustível
Em 2006, as 20 mil folhas de provas e indícios de irregularidades na comercialização de combustíveis na Bahia, reunidas em cinco anexos e um relatório - fruto de um ano e dois meses de trabalho da CPI dos Combustíveis -, foram entregues ao então procurador-geral de Justiça, Lidivaldo Brito.
Na época, o procurador-geral garantiu que “o MP vai agora se debruçar sobre todos os documentos e tomar as medidas necessárias para a punição dos possíveis culpados. É de nosso interesse que a atividade econômica, tendo toda a liberdade, desenvolva-se dentro dos parâmetros legais”. Ele acrescentou que uma das metas do planejamento da instituição visava exatamente o combate à sonegação fiscal.
Da CPI derivou ainda um projeto de lei que propõs assegurar ao consumidor o direito de obter informações corretas, claras, precisas e ostensivas sobre a natureza, procedência e qualidade dos produtos comercializados nos postos revendedores na Bahia.
CPI da Ebal
Em 2007, a CPI da Ebal enviou ao Ministério Público o relatório final que solicitava o indiciamento de 14 pessoas por formação de quadrilha, improbidade administrativa, peculato, falso testemunho, dentre outros crimes. O documento foi entregue ao procurador geral de Justiça em exercício, Hermenegildo Queiroz. Além do relatório, os parlamentares deixaram sob a responsabilidade do MP cerca de 50 mil documentos, distribuídos em 67 pastas, fruto de 11 meses de intenso trabalho da comissão.
CPI da Telefonia
O relatório das investigações e debates feitos durante um ano sobre a má prestação de serviços de telecomunicações na Bahia, rendeu, em 2014, a proposta de assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)entre as operadoras Oi, Vivo, Tim, Claro, o Ministério Público Federal (MPF), Ministério Público Estadual (MPE), PROCON e a AL-BA.
Pelo TAC, as operadoras se comprometeram a de antecipar os investimentos que interiorizavam e ampliavam a cobertura de sinal 3G em 34 municípios ainda sem acesso à internet móvel de qualidade, na época.
A proposta beneficiou mais de um milhão de pessoas, com a recuperação da rede de telefonia fixa e a realização de um mutirão conjunto para resolver todas as pendências dos consumidores em 27 municípios baianos.
Foto: Mateus Pereira/GOVBA