Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil
A renda do trabalho dos
brasileiros em 2023 teve o maior salto desde o Plano Real, quando a queda
abrupta da inflação, a partir da metade de 1994 e em 1995, promoveu forte
aumento do poder de compra no país.
Enquanto o PIB (Produto Interno
Bruto) cresceu 2,9% em 2023, houve aumento real, acima da inflação, de 11,7% na
massa de rendimentos do trabalho. É quase o dobro do cômputo de 2022 (6,6%) e o
melhor resultado desde 1995 (12,9%), segundo cálculos de Marcos Hecksher, do
Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
Outros dados, de Marcelo Neri,
diretor da FGV Social, mostram que a renda real domiciliar per capita saltou
12,5% no ano passado. A conta considera a renda das famílias dividida pelo
total de membros. Ambos resultados têm como base a PnadC (Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua do IBGE).
Nos 12 meses que antecederam o
lançamento do Plano Real, em 1º de julho de 1994, a inflação chegou a 4.922% —e
fecharia aquele ano em 916%. Em 1995, despencaria a 22%, turbinando o poder de
compra dos trabalhadores. Desta vez, a ajuda da inflação na renda foi marginal:
caiu de 5,79% em 2022 para 4,62% no ano passado.
A partir do segundo semestre de
2022 e ao longo de 2023, no entanto, o Brasil vivenciou uma explosão do gasto
público, aparentemente com efeitos multiplicadores na economia.
A grande dúvida é se a renda
maior ao fim de 2023 seguirá crescendo, ou mesmo se conseguirá manter-se no
novo patamar —pois boa parte dela dependeu de dinheiro estatal, de mais déficit
e do aumento da dívida pública.
Inicialmente, deu-se a derrama
de incentivos, benefícios e corte de impostos promovidos por Jair Bolsonaro
(PL) na segunda metade de 2022 em sua tentativa de se reeleger. Depois, veio a
PEC da Transição, de R$ 145 bilhões, para que Luiz Inácio Lula da Silva (PT)
pudesse gastar mais em 2023.
Lula também retomou a política
de aumento para o salário mínimo acima da inflação (com ganhos para 26 milhões
de aposentados no piso do INSS), concedeu reajuste ao funcionalismo público
federal e retornou programas, como o Minha Casa, Minha Vida.
Embalados pelo gasto público, os
anos de 2022 e 2023 fecharam com alta do PIB acima da média dos anos
pré-pandemia, em 3% e 2,9%, respectivamente. No mesmo período, a taxa de
desemprego caiu de 9,6% para 7,8%.
Mas, entre as principais medidas
adotadas tanto por Bolsonaro quanto Lula, antes e depois da troca de governo,
manteve-se o benefício de R$ 600 para milhões de famílias por meio do Auxílio
Brasil (no segundo semestre de 2022) e o Bolsa Família (a partir de janeiro de
2023), quando foram acrescidos mais R$ 150 por criança de 0 a 6 anos para as
famílias beneficiárias.
Em relação a antes da pandemia
—e após o triênio 2020-2022 atípico para a renda—, o Brasil triplicou o que
despende com o Bolsa Família, passando de 0,4% do PIB para 1,5%. O programa
prevê neste ano quase R$ 170 bilhões para 21 milhões de famílias. Juntas, elas
reúnem mais de um quarto da população.
Para comparar, os incentivos
fiscais do governo federal a empresas devem somar R$ 524 bilhões em 2024, ou
4,5% do PIB. Neste caso, não há direcionamento direto à população, como no
Bolsa Família.
Estudos mostram que programas
como o Bolsa Família têm grande potência multiplicadora na renda e no emprego.
Trabalho organizado por Neri, da FGV Social, e outros autores mostrou que o
Bolsa Família é, disparado, o programa que melhor atinge quem mais precisa.
Numa escala em que todos os
programas chegassem realmente aos mais pobres, o alvo seria -1. O Bolsa Família
chega a -0,64. O BCP (Benefício de Prestação Continuada), o mais
"pró-pobre" dentre todas as transferências federais que são
vinculadas ao salário mínimo, -0,07 —muito longe da eficácia do Bolsa Família.
Outro trabalho, de Naercio
Menezes Filho, do Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância,
sustenta que, para cada R$ 1 a mais per capita oferecido em um programa como o
Bolsa Família, o PIB per capita do município onde o dinheiro é gasto cresce R$
4.
Para Neri, uma das principais
explicações para o salto da renda em 2023 pode estar no efeito do Bolsa
Família.
"Se fizermos um negócio
focado nos pobres, guardando recursos fiscais para o que é mais ‘pró-pobre’
possível, o efeito multiplicador é enorme. Vamos combater a pobreza e a
desigualdade; e haverá um bônus macroeconômico considerável em termos não só de
renda, mas de emprego", afirma.
O economista lembra que o
direcionamento de 1,5% do PIB para o Bolsa Família deve ser recorrente, ou
seja, sem previsão de interrupção nos próximos anos —a não ser que haja uma
crise fiscal de grandes proporções. "Isso tende a impulsionar a economia.
Não foi um reajuste temporário", diz.
Para Hecksher, do Ipea, os
gastos públicos adicionais a partir do segundo semestre de 2022 explicam muito
do aumento da renda em 2023. "Já havia o efeito carregamento [de 2022 para
2023] da ‘turbinada’ do Auxílio Brasil no final do governo Bolsonaro. Por cima
disso, foram colocadas mais coisas, tanto no Bolsa Família como em outros
programas", diz.
Pelas suas contas, o aumento
real (acima da inflação) do salário mínimo em 2023 foi o maior desde 2012,
atingindo 4,1% na média do ano. "Aí você tem efeitos diretos no mercado de
trabalho e indiretos via Previdência. Em todas as aposentadorias e pensões, que
são a segunda maior fonte de renda das famílias na Pnad Contínua, atrás do
trabalho, cuja renda cresceu fortemente em 2023."
Em termos de ganhos de renda em
2023, a maior variação real positiva deu-se entre os trabalhadores do setor
privado sem carteira (14,9%).
São normalmente aqueles que
pertencem às famílias mais pobres e que as atendem com seu trabalho —e o Bolsa
Família, de um modo geral, tem considerável penetração nos dois grupos.
Entre os trabalhadores formais
do setor privado, no entanto, o ganho nos rendimentos foi de apenas 2,9%. Mas,
em recuperações econômicas, é esperado que o aumento do emprego e da renda
comece a ganhar tração primeiro no setor informal.
Há, no entanto, dois grandes
riscos no horizonte da recuperação do trabalho e da renda. O primeiro é o
fiscal. O novo arcabouço do governo Lula tem como meta zerar o déficit da União
neste ano, mas muitos economistas não acreditam que isso seja possível sem um
corte de despesas.
Uma preocupação recorrente é
que, como o PIB de 2023 mostrou uma economia parada na segunda metade do ano
—após o forte impulso fiscal do segundo semestre de 2022 e dos gastos maiores
no começo do ano passado—, existe o risco de o governo Lula tentar voltar a
pisar no acelerador do gasto, com impacto no déficit e na dívida pública.
Ao contrario de políticas
"pró-pobres" como as defendidas por Neri, o governo também vem
anunciando ou renovando outros gastos e incentivos a empresas e setores, até
por pressão do Congresso Nacional —o que pode minar a capacidade futura de sustentar
políticas "pró-pobres".
O segundo risco é a inflação. Em
2023, a taxa de investimentos na economia foi de apenas 16,5%, insuficiente
para aumentar a oferta de bens e serviços de forma sustentável.
Com a renda crescendo, pressões
inflacionárias podem voltar, colocando em xeque os cortes da taxa básica de
juro (a Selic) pelo Banco Central. E são os juros menores que podem estimular
investimentos produtivos para aumentar a oferta de bens e serviços.
Segundo André Braz, coordenador
dos índices de preços do FGV Ibre (Instituto de Economia da Fundação Getulio
Vargas), a inflação no setor de serviços (dois terços da economia) é o
"grande desafio para 2024".
Braz projeta o IPCA fechando
perto de 4% neste ano, mas alerta para o risco fiscal. "Temos aí um
problema. A prioridade deveria ser atacar isso, diminuindo o risco-país [a
percepção que investidores internacionais têm do Brasil] e estabilizar a taxa
de câmbio", afirma.
Caso contrário, se o dólar
subir, ele será um poderoso canal inflacionário pela via das importações
—podendo interromper a queda dos juros e o aumento dos rendimentos do trabalho
no Brasil.