Foto: Alex Pazuello/ Semcom / Prefeitura de Manaus
As mortes em excesso, três anos após o início da
pandemia, ainda continuam acima do que é esperado de mortalidade no Brasil,
embora agora em um patamar bem menor do que nos primeiros anos da Covid-19.
As mortes em excesso se referem ao número de óbitos
registrados no país acima do que era esperado para aquele ano, considerando o
padrão observado em anos anteriores. A Covid, que já matou mais de 700 mil
pessoas, alterou esse padrão.
Em 2023, a taxa esteve um pouco acima do esperado
de mortes até março, mês para o qual há dados disponíveis mais recentes. No
período, foram aproximadamente 48 mil mortes a mais, ou 18% acima do esperado.
No pico da pandemia, em abril de 2021, este valor
chegou a 80% na região Norte, por exemplo.
Os dados chamam a atenção para o fato de a Covid,
embora agora em menor intensidade, ainda ser uma doença que provoca, ela
própria ou indiretamente, um excesso de óbitos no país.
Para Fátima Marinho, epidemiologista e consultora
sênior da Vital Strategies, as mortes em excesso na pandemia foram importantes
para entender a real dimensão dos óbitos pelo coronavírus.
"As principais causas de morte no país, que
são câncer e doença cardiovascular, caíram na pandemia, então o excesso foi
realmente causado por Covid, que foi a novidade em termos de doença",
explica.
Outras mortes, como as causadas por diabetes,
tiveram aumento no período —um tipo de condição de saúde que é agravado pela
Covid e também pode piorar o quadro da doença, levando ao óbito. Já em 2023
houve uma queda desde janeiro no excesso de mortalidade, embora ainda levemente
acima do limite esperado.
"Em conjunto, é um excesso muito grande de
mortalidade que este ano começou com um pico em janeiro, e desde então vem
caindo. Não temos ainda os dados do período de inverno, mas é esperado agora
que tenham mais quadros respiratórios por outros vírus, que ficaram em baixa na
pandemia e agora voltaram a circular", afirma.
O painel de excesso de mortalidade é produzido pelo
Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) em parceria com a
organização de saúde pública Vital Strategies e a Arpen-Brasil (Associação
Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais).
Como muitos dos dados durante a emergência
sanitária da Covid tinham um atraso no registro, o painel foi fundamental para
entender, em tempo real, qual era o verdadeiro impacto da doença em relação às
mortes no país.
"O painel foi crucial para avaliar o impacto
da pandemia na mortalidade independentemente da causa de morte. Em conjunto, o
Conass tinha também um painel de casos e óbitos, que reunia as informações
obtidas com as Secretarias de Saúde, destacando a importância do uso dos dados
na pandemia", afirma o estatístico e consultor técnico em ciência de dados
da Vital, Renato Teixeira.
Para chegar ao excesso de mortes, os pesquisadores
levantam os atestados de óbito registrados em cartórios no país devido a causas
naturais —excluindo, portanto, causas externas, que são homicídios, suicídios e
acidentes de trânsito.
Em seguida, eles comparam os números com a série histórica
de óbitos, obtida pelo portal SIM-MS (Sistema de Informação de Mortalidade do
Ministério da Saúde) no período de 2015 a 2019.
Digamos que, anualmente, o país registra cerca de 1
milhão de mortes por todas as causas naturais, como câncer, acidentes
vasculares cerebrais (AVC) e outras condições de saúde. Em 2020, no primeiro
ano da pandemia, foram registradas 1,24 milhão —aumento de 24%. Este aumento
representa as mortes acima do esperado e é classificado como excesso de
mortalidade.
Em 2020 e 2022, esse excesso de mortalidade
calculado foi de 24%. Já em 2021, quando foi também registrado o maior número
de mortes por Covid, com 424.133 óbitos, o excesso foi de 46%.
Segundo Nereu Henrique Mansano, assessor técnico do
Conass, é importante notar que ainda são registrados cerca de 150 óbitos por
semana no país, ou 600 por mês, algo observado somente em períodos de surto de
gripe, por exemplo.
"Ainda é um número considerável de mortes,
pode ter um reflexo de complicações decorrentes de outras infecções, mas é
importante não baixar a guarda", avalia.
Apesar de ter ajudado a compreender a real dimensão
da pandemia nos três primeiros anos, a metodologia utilizada para o cálculo é
criticada por alguns especialistas.
Para Paulo Lotufo, epidemiologista e professor
titular da Faculdade de Medicina da USP, existe um problema ainda não
solucionado desde o início da pandemia que é a má qualidade dos atestados de
óbito. "A impressão é que de fato estamos em queda, mas os atestados ainda
têm inconsistência", avalia.
Lotufo prefere usar os dados do portal PRO-AIM
(Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade) para o cálculo do
excesso de mortalidade na cidade de São Paulo, com dados até julho de 2023.
"A avaliação é que reduzimos em 2% as mortes [em excesso] em 2023, mas
ainda assim mantém um patamar acima em relação à média de 2015 a 2019."
Já a demógrafa e professora da Universidade Harvard
Márcia Castro, colunista da Folha de S.Paulo, contesta se esse excedente não é,
na verdade, um dado ainda influenciado pela pandemia.
"À medida que a mortalidade por Covid cai
drasticamente pela vacinação, não sabemos se a mortalidade por outras causas
irá retornar ao padrão observado até 2019 ou se as mudanças —tanto aumento como
declínio, dependendo da causa de morte— ainda irão persistir por um tempo. Além
disso, ainda temos pouca compreensão das consequências a longo prazo da Covid
longa na mortalidade", disse.
Embora o cenário atual seja mais favorável, os
especialistas têm receio de que a baixa cobertura vacinal, especialmente em
crianças, possa provocar novas infecções e quadros de hospitalização grave.
Levantamento da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) com dados até o último dia 9 de
agosto revelam que apenas 11,4% das crianças de até cinco anos foram
devidamente imunizadas contra a Covid.
Em relação aos adultos, a vacinação com a
bivalente, produzida com a cepa ancestral de Wuhan e as novas variantes do
coronavírus, está em 13%, segundo levantamento da Folha de S.Paulo com dados
até junho.
O momento é de especial atenção devido à circulação
de uma nova variante do vírus que, embora ainda careça de dados sobre se
provoca um quadro infeccioso mais grave, pode reinfectar pessoas que já estão
há muito tempo sem a atualização vacinal.
"A cobertura está baixa para terceira dose, e
temos que pensar que deixamos um legado de pessoas doentes, seja por sequelas
de Covid, seja por outras assistências médicas que falharam no período da
pandemia. E sabemos como a resposta humoral [de anticorpos] acaba reduzindo
depois de um tempo, por isso a importância do reforço", finaliza Marinho.