Reportagem publicada originalmente no Jornal da Metropole em 21 de abril de 2022
Lentamente um cenário é desmontado. Tiram-se as máscaras, caem os decretos emergenciais, leitos hospitalares deixam de ser exclusivos para a Covid-19 e já não há filas quilométricas para a vacina.
Mas algo permanece. Debaixo das marquises, o número de pessoas aumenta. Nos ônibus e nas ruas, é recorrente o pedido por comida. No novo contexto, a fome e a pobreza são mantidas como um legado da pandemia.
“Nós temos dois restaurantes populares e neles tivemos que aumentar a nossa oferta de alimentação de 700 para 1000 refeições diárias”, disse Kiki Bispo, que deixou a secretaria municipal de Combate à Pobreza na última segunda-feira.
Apesar da falta de dados recentes — a última pesquisa foi feita pelo IBGE, em 2019 —, gestores e movimentos sociais apontam os sinais do empobrecimento no país nos últimos dois anos.
Na capital baiana, de acordo com Kiki, mudou ainda o perfil de quem buscava o serviço dos restaurantes populares. Se antes, a maioria era de pessoas em situação de rua, agora trabalhadores autônomos e desempregados também passaram a ocupar as filas.
As procuras por cestas básicas nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) também cresceram na Bahia, conforme a superintendente de Assistência Social da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, Leisa Sousa.
“A gente vem monitorando o volume de atendimentos que o CRAS vem fazendo. Todos os municípios repassam os dados. Quando a gente comparou os dados de 2021 para 2020, a demanda por benefício eventual, como cesta básica ou auxílio moradia, que garantem a sobrevivência cresceu mais que 50%”, conta.
São 3,6 milhões de famílias baianas inscritas no CadÚnico, registro do governo para acompanhar pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza. Destas, mais de 2 milhões recebem o Auxílio Brasil (antigo Bolsa Família). Desde 2020, mais 500 mil pessoas fizeram o cadastro.
“No nosso estado, a gente tem o maior número de famílias em situação de extrema pobreza [dado de 2019], o Auxilio Brasil tem a identificação pelo CadÚnico, que tem faixas de família em extrema pobreza, pobreza e vulnerabilidade social. A grande maioria, acho que 80%, é de extrema pobreza”, diz Leisa Sousa.
Apenas nos três primeiros meses deste ano, mais de 50 mil famílias de Salvador se cadastraram no CadÚnico para receber o benefício.
A massoterapeuta Taciane Silva, de 28 anos, constata os dados na rotina. Trabalhando na Pituba e morando em Pau da Lima, Taciane viaja diariamente de ônibus. Após alguns meses de pandemia, começou a perceber o aumento de pedintes e de vendedores no transporte público. Em geral, com uma mesma história: perderam o emprego durante a quarentena e não conseguem mais se sustentar.
“Se eu pegar um ônibus por dia, pode ter certeza que vai entrar 3 ou 4 com a mesma fala — que precisa ir para a rua porque não consegue comer. Tinha um homem que estava pedindo ajuda e até biscoito, bolacha, o que tivesse ele estava aceitando, porque estava com fome. A menina que estava no ônibus deu a marmitinha dela para ele”, conta.
Parceiros e a Inflação
De acordo com a Defensoria Pública do Estado, durante a pandemia, muitas pessoas que perderam seus empregos passaram a desenvolver atividades informais, como catar recicláveis, ou vender picolé e balas. Mas apesar de terem um local para onde voltar, se mantiveram nas ruas por não ter comida em casa, dinheiro suficiente para pagar transporte ou mesmo por vergonha de voltar de mãos vazias.
Quem não consegue auxílio, muitas vezes se encaixa em outra estatística: o aumento de furtos por fome, chamados de ‘furtos famélicos’. Segundo levantamento da DPE, entre 2017 e 2021, o número de pessoas enquadradas pela Justiça nesta tipificação subiu de 11% para 20%.
“A gente percebeu que aumentou gritantemente o número de pessoas em situação de rua. Não tem dados sobre isso porque infelizmente a Pop Rua vive num apagão estatístico. Então, a gente não sabe quais são os números reais . De forma experimental, vemos que o desemprego é o principal fator”, diz o presidente da ONG ‘Salvador Invisível’, Lucas Gonçalves.
De acordo com o estudante de direito, que atua com a população de rua, basta dar uma volta no Largo dos Mares e na Djalma Dutra para perceber a nova realidade. “A Djalma Dutra é interessante porque antes da pandemia eu andava muito por lá e tinha diminuído o número de pessoas nesta região. Ano passado, a gente foi fazer entrega, e dobrou o número de pessoas. Se antes tínhamos que mandar 20 quentinhas, agora mandamos 40 ou mais”, conta.
Os voluntários da ONG ‘Seja Semente’, que atua há sete anos em Salvador, relatam situações semelhantes.
“Mudou muita coisa. Nas últimas semanas, a gente tava levando 200 marmitas, mas já tem duas ações que acabam ficando pessoas na fila, principalmente no Fórum, sem comer”, conta Andressa Borges, de 27 anos.
O número de doadores também diminuiu, à medida que os preços para a cesta básica e as quentinhas aumentaram.
“Está tudo muito caro. O que a gente comprava antes de 20 kg de frango por R$ 200, hoje em dia é R$ 500 ou R$ 600. Gastamos R$ 1.600 em uma ação. E tinham pessoas que eram nossos voluntários, ajudavam, e hoje já não podem mais — porque sabemos que o custo de vida é muito caro”, conta Andressa.
De acordo com a superintendente de Assistência Social, a culpada pelo empobrecimento não é apenas a pandemia. A inflação também afeta diretamente a vida dos brasileiros. O IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) indica uma inflação de 10,06% em 2021.
“A gente já vinha num processo [de ampliação da extrema pobreza] crescente com a crise que o país vem vivenciando — o desemprego, a redução de investimento federal na assistência social”, afirma Leisa Souza.
De acordo com ela, mesmo que as famílias tenham hoje a possibilidade de receber o Auxílio Brasil, elas têm menos condições de fazer uma boa alimentação por causa do aumento de preços. O custo da cesta básica aumentou 48,3% em três anos.
“Esse recurso deveria garantir uma boa alimentação. Mas voltamos ao mapa da fome”, conclui.