O estabelecimento de um prazo máximo de 60 dias para que o presidente da Câmara e do Senado analisem pedidos de impeachment de competência de cada Casa é o ponto-chave da proposta formulada pelos senadores da CPI da Covid para alterar a lei 1079, de 1950, conhecida como lei do impeachment.
 

Com o texto, o colegiado reage aos mais de 130 pedidos de impedimento contra o presidente Jair Bolsonaro que até agora foram ignorados pelos presidentes da Câmara desde 2019, nas gestões de Rodrigo Maia (Sem partido-RJ) e, atualmente, de Arthur Lira (PP-AL).
 

Uma nova solicitação de impeachment deve ser apresentada com base no relatório da comissão, que acusa o presidente de crime de responsabilidade por violar o direito à saúde da população, ao minimizar os efeitos da pandemia e apoiar medicamentos sem eficácia contra a doença, além de quebra de decoro.
 

Eleito com o apoio de Bolsonaro, Lira tem demonstrado alinhamento com o Planalto e já mencionou em diferentes ocasiões que não vê chances de um processo de impedimento do presidente prosperar na Casa, onde precisaria do aval de 342 deputados.
 

A postura do deputado motivou o PDT a ingressar com uma ação no STF (Supremo Tribunal Federal) para que o presidente da Câmara seja obrigado a decidir dentro de um prazo razoável sobre os pedidos que mantém na gaveta.
 

Em manifestação apresentada no início de outubro, a AGU (Advocacia-Geral da União) afirmou que obrigar o presidente da Câmara a analisar pedidos viola o princípio da separação entre Poderes.
 

Para especialistas ouvidos pela reportagem, o mesmo não poderia ser dito caso o projeto proposto pela CPI avançasse, uma vez que a iniciativa é do Legislativo.
 

O texto estabelece um prazo de 30 dias para análise dos pedidos, prorrogável por igual período, para que o presidente da Câmara, responsável por pautar processos contra o presidente da República e ministros de Estado, e também do Senado, que responde pelo impeachment de ministros do Supremo, se manifestem.
 

A iniciativa foi elogiada e vista como uma forma de evitar que os pedidos sejam ignorados, como ocorre hoje.
 

A professora de direito constitucional Vera Karam, da UFPR (Universidade Federal do Paraná), diz que o presidente da Câmara exerce uma função fundamental, mas que ele não pode ter um super poder e que o texto do PL reduz excessos.
 

"O presidente da Câmara só poderia negar o seguimento a determinado pedido de impeachment se inexistente os requisitos formais para o seu encaminhamento, mas ele não pode simplesmente deixar de analisar e ficar com aquilo como moeda de troca", diz.
 

Tal previsão, presente no artigo 16 da lei de impeachment, é reforçada no texto proposto pela CPI da Covid, que diz que uma vez cumpridos os requisitos legais, o recebimento da denúncia será deferido.
 

Sobre esse aspecto, há opiniões diferentes sobre se o acréscimo do dispositivo mudaria algo.
 

O professor de direito da FGV Rio Thomaz Pereira afirma que a redação deixa ainda mais claro que não cabe ao presidente da Câmara analisar o mérito dos pedidos, mas encaminhá-los para que o exame seja feito pela comissão especial.
 

"Se a gente interpretar literalmente essa mudança, ela parece não só afirmar que o poder do presidente da Câmara precisa ser exercido num prazo, mas como ele é muito mais limitado do que na prática tem sido exercido."
 

Ele lembra que a ampliação do poder do chefe da Casa foi uma resposta diante do excesso de pedidos, que podem ser feitos por qualquer cidadão.
 

Pereira acrescenta que esse seria um momento importante para fazer outras mudanças e constituir uma comissão permanente na Câmara para analisar as solicitações.
 

O professor de direito da USP Rafael Mafei, autor de um livro sobre a história do impeachment no Brasil, considera que a proposta não traz novidade neste aspecto, pois não houve alteração no regimento da Câmara.
 

Além disso, Mafei cita o entendimento fixado pelo Supremo, ainda no governo Sarney, de que não há obrigatoriedade no encaminhamento de pedidos completamente estapafúrdios para a comissão.
 

"Ele pode determinar, sumariamente, o arquivamento de pedidos que ou estejam descumprindo requisitos formais, ou cuja conduta narrada obviamente não revele nenhum crime de responsabilidade."
 

"Existem diversos casos de decisões de presidente da Câmara nesse sentido, para evitar que qualquer absurdo gere uma comissão do impeachment."
 

O professor da USP também elogia a fixação de um prazo para análise, mas lembra que há espaço para outras manobras. Ao invés de ignorar o pedido, o presidente da Câmara poderia passar a arquivar as denúncias e a decisão final de eventuais recursos ficaria a cargo dele mesmo.
 

"O recurso contra a decisão tem que ser interposto por parlamentares, mas quem decide pautar o julgamento do recurso é o próprio presidente. E esse prazo para pautar o julgamento, na prática da Câmara, também tem sido flexível, sem um término peremptório", completa.
 

Outro aspecto apontado por Diego Werneck, professor associado do Insper, é o cálculo político que é feito pelo presidente da Câmara ao não pautar os pedidos, levando em conta o cenário no Congresso Nacional.
 

"No fundo, é como se disse que depende só do Arthur Lira e antes só do Rodrigo Maia, como se esses atores não fizessem contas de quantos votos teria [no plenário]. É complicado imaginar que ele consiga manter o presidente no cargo se houver uma maioria no Congresso comprometida."
 

"O silêncio pode ser uma resposta política, mas a questão é que a população tem direito a uma resposta sobre um tema tão grave, ainda que ela seja: não vamos apreciar."
 

Além de impactarem na análise dos pedidos, as forças políticas podem ainda travar a tramitação proposta sugerida pela CPI, uma vez que não há regra que estabeleça uma mudança no rito de análise para proposições legais feitas pela comissão.
 

Outro aspecto é que, ainda que a proposta avance, os presidentes das duas Casas têm o poder de pautar ou não a votação no plenário.
 

Após o desentendimento de Lira e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do Senado, com a cúpula da CPI devido à inclusão de parlamentares no relatório final, senadores afirmaram que não vão entregar o texto pessoalmente ao deputado, argumentando que isso nunca esteve nos planos --embora anteriormente tenham dito o contrário.
 

A cientista política Carolina de Paula, diretora executiva do DataIesp, agência de pesquisa aplicada vinculada ao Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj, afirma que, na composição atual do Congresso, há pouca chance de a proposta ser aprovada.
 

"Pode passar essa legislatura e ele nunca avançar, o que acredito que provavelmente é o que vai acontecer. Vemos que as principais questões envolvendo governabilidade, acontecem no ano anterior à eleição. No ano eleitoral, os deputados e senadores estão envolvidos com isso e a rotina do Congresso fica muito parada".
 

Carolina Botelho, doutora em ciência política e pesquisadora da Universidade Mackenzie, concorda que o ambiente não é favorável, mas que o governo está mais enfraquecido agora e só tem conseguido sustentar o apoio com a distribuição de emendas.
 

Ela acrescenta que o impacto gerado pelo trabalho da CPI da Covid também deverá pesar no cálculo político dos parlamentares, que poderão sofrer nas urnas por ignorar a proposta.
 

"O relatório da CPI é muito contundente, com evidências muito fortes, e isso cria um constrangimento a esses atores políticos a se manterem ao lado do governo. Ao mesmo tempo, aqueles que vislumbravam aquele governo que pudesse dar apoio para as suas eleições, passam a ficar mais enfraquecidos", diz.
 


 

O CAMINHO DO IMPEACHMENT
 

O presidente da Câmara dos Deputados é o responsável por analisar pedidos de impeachment do presidente da República e encaminhá-los
 

O atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é aliado de Jair Bolsonaro. Ele pode decidir sozinho o destino dos pedidos e não tem prazo para fazê-lo
 

Nos casos encaminhados, o mérito da denúncia deve ser analisado por uma comissão especial e depois pelo plenário da Câmara. São necessários os votos de pelo menos 342 dos 513 deputados para autorizar o Senado a abrir o processo
 

Iniciado o processo pelo Senado, o presidente é afastado do cargo até a conclusão do julgamento e é substituído pelo vice. Se for condenado por pelo menos 54 dos 81 senadores, perde o mandato
 

Os sete presidentes eleitos após a redemocratização do país foram alvo de pedidos de impeachment. Dois foram processados e afastados: Fernando Collor (1992), que renunciou antes da decisão final do Senado, e Dilma Rousseff (2016)