Uma auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE) apontou sobrepreço de R$ 241,4 milhões no orçamento da ponte Salvador-Itaparica. O valor, considerado pelos técnicos do órgão como "excessivo frente ao mercado", interfere diretamente na contraprestação que o governo estadual vai pagar anualmente ao consórcio que ficará responsável pela administração do equipamento. Fixada em R$ 56,2 milhões, a cifra poderia ser menor se o sobrepreço fosse corrigido, o que não ocorreu. Em dezembro de 2019, os auditores chegaram a solicitar a suspensão da licitação, mas, após quase um ano, o pedido nunca foi apreciado pelo TCE, contrariando prazos estabelecidos em resolução da própria Corte. Apesar dos questionamentos, o contrato de concessão da ponte deve ser assinado no próximo dia 12 de novembro, sem indicativo de que os problemas apontados pelo tribunal serão resolvidos. A assinatura, no entanto, não livra o maior projeto de infraestrutura do governo baiano de um risco: caso o tribunal acate a cautelar, a ponte pode voltar à estaca zero.

 

Segundo a auditoria, concluída em dezembro de 2019, foram encontrados sobrepreços no orçamento geral da ponte e nos seus acessos viários, decorrentes de preços excessivos em relação aos praticados no mercado e de quantidade de material acima do necessário para construção do equipamento. 

 

O parecer dos auditores, cujos principais trechos estão no relatório sobre as contas do governo Rui Costa de 2019, julgadas neste ano, também apontou aplicação irregular de dispositivo do artigo 5º da Lei Federal de Parcerias Público-Privadas (PPP), que fala sobre normas para regularizar a inadimplência no pagamento das contraprestações; ausência de justificativa para concessão quando foi realizada consulta pública sobre a ponte; e falta de amparo legal na fixação de teto para pagamento de indenizações. 

 

PEDIDO DE SUSPENSÃO
O corpo técnico do TCE concluiu que o planejamento do orçamento e a execução da licitação foram irregulares, até aquele momento, e recomendou à Secretaria de Infraestrutura da Bahia (Seinfra) que suspendesse o leilão da ponte até que o governo definisse novas bases contratuais menos desvantajosas para o estado. A pasta respondeu aos questionamentos dos auditores, mas eles não foram suficientes para mudar o entendimento da equipe sobre o sobrepeço.

 

Diante do potencial prejuízo aos cofres públicos causado pelas irregularidades apontadas, os auditores pediram ao tribunal, em 3 de dezembro do ano passado, concessão de medida cautelar para suspender a licitação até que a questão fosse sanada. Sorteado relator do caso, o conselheiro João Bonfim tinha cinco dias para decidir se aceitava a solicitação. Já o plenário da Corte deveria referendar a decisão do colega na sessão seguinte, como determina a resolução 162/2015, que disciplina a tramitação de medidas cautelares no TCE.

 

Cautelares são instrumentos que visam proteção ao erário, através da suspensão de procedimento administrativo irregular com “ameaça de grave dano de difícil e incerta reparação”, como explica a resolução. Por isso, seu rito de tramitação é rápido porque o objetivo é corrigir o problema antes que ele agrave. Passados 11 meses, no entanto, Bonfim ainda não proferiu decisão monocrática, o que impede o plenário do tribunal de se debruçar sobre o caso. 

 

O relator tem optado por ouvir o posicionamento da Procuradoria-Geral do Estado (PGE) sobre as conclusões dos auditores, mesmo que a resolução permita ao conselheiro decidir sem manifestação prévia dos envolvidos. De dezembro de 2019 até novembro deste ano, o caso já parou nas mãos da PGE pelo menos duas vezes. Neste período, a cautelar foi encaminhada aos auditores por Bonfim em quatro momentos, indicando que ele abre constantemente prazos para ouvir as partes, mas, mesmo após as manifestações, não profere decisão.

 

Ex-deputado estadual, o conselheiro chegou ao tribunal em 2014, pelas mãos do ex-governador Jaques Wagner (PT), que o indicou para o cargo. Seu herdeiro político é seu filho, o deputado estadual Vitor Bonfim (PL), que integra a base do governador Rui Costa na Assembleia Legislativa da Bahia (AL-BA). Procurado via gabinete desde a quarta-feira da última semana, Bonfim não respondeu aos questionamentos do Bahia Notícias até o fechamento da reportagem. A Seinfra também não enviou resposta. 

 

Caso depende de decisão do conselheiro João Bonfim | Foto: Divulgação

 

O QUE PODE ACONTECER COM A LICITAÇÃO
Prestes a assinar o contrato com o consórcio vencedor do leilão da ponte - formado pelas empresas China Railway 20 Bureau Group Corporation (CR20); CCCC South America Regional Company e China Communications Construction Company Limited (CCCC Ltd) - o governo baiano, próximo como nunca esteve de tornar a obra realidade, pode ter que voltar à estaca zero em um projeto que tenta emplacar desde a gestão Jaques Wagner. 

 

Na avaliação do advogado Ubaldo Senna Neto, especialista em direito processual civil, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem firmado o entendimento de que os tribunais de contas podem propor a suspensão de licitações e da execução de contratos, caso enxergue perigo de dano aos cofres públicos. 

 

“No julgamento da cautelar, o relator pode propor a suspensão da assinatura do contrato e até da suspensão da execução do contrato, principalmente em se tratando de interesse público em razão de possível dano ao erário, pois tem o chamado poder geral de cautela”, explica.

 

O entendimento da PGE, no entanto, é diferente. “A PGE entende que houve perda de objeto da cautelar, pois o pedido visava a suspensão da licitação e a mesma já foi homologada”, afirma Patrícia Saback, procuradora Assistente do Núcleo de Atuação junto ao TCE, em nota encaminhada ao BN. Apesar desta avaliação, a procuradoria assume que uma decisão do TCE em favor da cautelar pedida pelos auditores anula todas as fases da licitação cumpridas até aqui. 

 

Caso o desfecho do caso seja desfavorável ao governo, o imbróglio pode ser judicializado, segundo Ubaldo Neto. “Com o contrato assinado e uma decisão determinando a suspensão de sua execução, o próprio argumento do estado da Bahia pode ser de interesse em ver a ponte construída, um interesse público, um prejuízo aos cidadãos com uma possível suspensão”, pontua. 

 

O QUE DIZ A PGE
A procuradora Patrícia Saback afirmou discordar do entendimento dos auditores porque a análise de PPPs, conforme a PGE, deve ser “diferente da análise das contratações tradicionais de obras públicas, privilegiando-se, neste caso, o valor global da contratação.”

 

“Além disso, mesmo se fossem analisados os custos unitários, o Estado utilizou de forma adequada especificações que não foram observadas pela Auditoria, a exemplo dos flutuantes com sistema de fundeio, da necessidade de utilização de plataformas jackup Sirius, bem como do uso de mergulhadores em trabalhos com profundidade maior que 50 m, com necessidade de inclusão dos respectivos custos de assistência médica nos postos de trabalhos, dentre outras questões”, detalha a nota encaminhada pela assessoria do órgão.

 

Sobre uma possível judicialização do caso, a procuradora respondeu que “a medida cautelar não foi concedida de forma liminar, tendo sido garantido contraditório e a ampla defesa, de forma que a PGE continuará defendendo os interesses do Estado no caso.” 

 

HISTÓRICO
A primeira vez em que se falou na Ponte Salvador-Itaparica foi em 24 de março de 2009. Na ocasião, o então governador Jaques Wagner informou que entregaria à também então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, um projeto para a construção de uma ponte que ligaria Salvador à Ilha de Itaparica. O anúncio foi feito durante a I Mostra Nacional de Desenvolvimento Regional, que acontecia em Salvador, e citado inclusive pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (veja todo o histórico da ponte aquiaqui e aqui).

 

Desde então, a obra ganhou contornos lendários. Promessa de campanha do segundo governo do atual senador, não saiu do papel. A promessa mudou, então, para as mãos de Rui Costa, candidato à sucessão de Wagner em 2014.

 

Quatro anos do mandato do petista se passaram, e a ponte continuou no campo das intenções, sem perspectiva de quando se tornaria realidade. A necessidade de se empregar recursos bilionários na construção, sem segurança de retorno financeiro, fez com que muitos investidores declinassem de levantar a ponte. 

 

A segunda gestão de Rui veio e parecia que a obra, já antológica, seria gerada pelas mãos dos chineses. A realização ficou ainda mais próxima com o leilão, feito em dezembro do ano passado, quando um consórcio chinês ganhou a concessão para construir e operar o equipamento por 35 anos. 

 

Mas aí, como se a ponte estivesse fadada ao “quase chegou lá”, veio a pandemia de Covid-19, que suspendeu, em abril deste ano, a assinatura do contrato. Com a contaminação em estágio menor no estado, o governo marcou a assinatura para 12 de novembro. Todo o processo teve participação ativa do vice-governador João Leão (PP), que se tornou o representante oficial do Executivo nas negociações com os chineses. Ao que parece, as coisas caminham para que o negócio se concretize, mas a sombra do fracasso permanece rondando a ponte, agora devido aos problemas identificados pelo TCE. 

 

A obra é orçada em R$ 5,3 bilhões. Uma parcela menor desses investimentos na construção será arcada pelo governo baiano, que contribuirá com R$ 1,5 bilhão. O estado também pagará as contraprestações de R$ 56,2 milhões. O consórcio ainda terá uma terceira fonte de arrecadação, que virá por meio da cobrança de pedágio. 

 

O objetivo é construir uma ponte de 12,3 quilômetros entre a capital Salvador e a Ilha de Itaparica, que deverá encurtar a viagem dos atuais 90 minutos para aproximadamente 30 minutos, além de facilitar o acesso entre capital e o litoral sul do Estado. 

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